Quiriarquia, quiriarcado

 Esse termo foi cunhado pela autora feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza em 1992 em seu livro "But She Said: Feminist Practices of Biblical Interpretation".  Surgido no seio de uma leitura feminista e crítica da teologia cristã, o termo ganhou vida na caneta e nos teclados de outres pensadorus ao longo dos anos seguintes, sendo incorporado à uma sociologia anarquista. Isso aconteceu porque o anarquismo já tinha o conceito de quiriarquia funcionando dentro dos seus textos e interpretações de mundo, só não tendo uma expressão efetiva unificada para descrever todos os fenômenos que essa palavra contém sozinha.

Então vamos à definição mais tradicional: quiriarquia (no original em inglês, kiriarchy) vem para descrever uma instância superior ao patriacado no que tange os sistemas de privilégio, isto é, não descrevendo apenas o domínio do pai sobre a família e do homem sobre a sociedade, mas sistemas de hierarquia em geral que também atuam em conjunto com o machismo e que o reforçam, são por ele reforçados e compõem um sistema de opressão da humanidade interseccional e interdependente.

Assim, quiriarquia é a afirmação de sistemas de opressão e controle como o machismo, racismo, capacitismo, etarismo, homofobia, transfobia, classismo, xenofobia, adultismo, adultocentrismo, elitismo, complexo prisional-industrial, efebifobia, gerontofobia, estatismo, colonialismo, religião, militarismo, etnocentrismo, antroprocentrismo e especismo. Essa não é uma lista exaustiva!

Podemos compreender facilmente como questões desse tipo têm um caráter interdepentende visualizando exemplos reais: um terço das mulheres que servem ao exército brasileiro relatam abuso sexual. Em primeiro, o exército admite dois gêneros binários em suas fileiras (transfobia e reforço da binariedade de gênero). Em segundo, essas pessoas não-homens sofrem a objetificação sexual do machismo, estão submetidas a uma cadeia de comando de um ambiente predominantemente machista e que por, si mesmo, tem uma forma opressiva de organização hierárquica e opressiva (o militarismo), Ora, nessa cadeia de comando ditatorial do ambiente militar, facilmente se reforça o direito ao agressor de reproduzir a masculinidade nesse aspecto violador (algo bem naturalizado hoje). Qualquer desumanização e demolição da autonomia psicológica da pessoa é basicamente um produto inevitável do militarismo, que ressalta e multiplica a possibilidade de abusos sexuais, humilhação, assédio e outras coisas bem abundantes e até normalizadas nesse âmbito. Homossexualidade e transgenereidade no exército suscitam problemas igualmente agudos.

É bem difícil separar o machismo, a transfobia e a homofobia, assim como expressões de opressão específica aos diversos setores que compõe as pessoas LGBTIAQP+ 

Outro exemplo mais fecundo ainda é o de classe social e raça no Brasil (e no mundo capitalista em geral): a combinação de elitismo e racismo cria um sistema de opressões reforçado pelo discurso meritocrático e ideologias liberais que culpabilizam a pessoa pela pobreza e enaltecem a livre-iniciativa como solução exclusiva, ignorando a raiz histórica da pobreza e do menor acesso à educação e oportunidades por pessoas pretas, quilombolas e povos originários no Brasil. 

Essas populações são excluídas em muitos fronts, mantidas na margem da sociedade, chacinadas nas ruas, mal-tratadas, empregadas em funções precárias e sujeitas à criminalização de sua cultura. O colonialismo se encarregou de criar esses problemas e segue se manifestando na forma como as pessoas que descendem de colonizadores que se apropriaram do território, deram-lhe um nome e legitimam sua cultura como a cultura oficial desse espaço, negando à populações descendentes de escravizades ou cujas terras foram invadidas qualquer direito de cultura própria.

Basicamente, a ideologia por detrás da colonização é a religião, que tem um forte papel colonizador na mentalidade da pessoa doutrinada até o momento presente, não tendo perdido em nada seu caráter como sistema hierárquico de opressão. Ela atua amansando a população e a conformando a uma mentalidade europeia como superior (existem discursos que dizem que a cristianização das populações não-europeias foi um bem para elas, pois salvou suas almas e toda uma papagaiada do gênero).

Com a criminalização produzida pelo elitismo e injustiça econômica, entra o complexo prisional-industrial quando vemos o encarceramento em massa e condições de trabalho precárias: aqui e ali submete-se à tortura e destruição o corpo da pessoa racializada como não-branque de modo mais intenso. Tudo isso é um fundamento poderoso da manutenção do poder atual: o estatismo como sistema opressivo se manifesta papel das leis opressivas, estado policial e a ausência de ação social sobre os problemas. Não seria possível ao estado cumprir outro papel, pois em toda forma que surge, se mantém à revelia de populações exploradas. A própria criminalização beneficia as elites, pois uma sociedade de classes sociais têm no crime mais um mercado para o lucro das mesmas classes que seguram os setores produtivos "legítimos".

Nenhuma dessas coisas descritas acima deixa de estar a serviço de um etnocentrismo, onde a etnicidade protegida é branca, a cultura é européia, a religião é cristã, a classe é burguesa, a ideologia é liberal e nacionalista, etc.

Ser uma pessoa não-masculina ou transgênere preta, quilombola ou indígena constitui, assim, uma precariedade e um nível de ataques e torturas socialmente aceitas muito maior do que uma pessoa branca análoga. Agora, a pessoa não-masculina, trans ou não-binária branca também está sujeita a sistemas de opressão do machismo, transfobia e outros. Então, as opressões são entrelaçadas num sistema que necessariamente submetem as pessoas como estratégia deliberada para manter a dominação social em funcionamento: a maioria das pessoas sofrará ao menos um tipo de opressão.

O anarquismo, desde suas raízes mais antigas, já expressava, sem tantos exemplos e vocabulários próprios, esse tipo de raciocínio, compreendendo a dominação masculina e europeia como sistemas de opressão à serviço da dominação econômica, social e cultural. O anarquismo insistiu no papel especial da religião como meta-ideologia (transmutada em liberalismo e culto à nação) desse tipo de dominação.

Podemos adcionar produtivamente o amor romântico, os sistemas gâmicos (mono- e poli-), a pressão estética, a psicofobia e o produtivismo como parte da quiriarquia.

Essa categoria é produtiva para além de qualquer aversão que algumas pessoas têm de teorias "pós-modernas" (mesmo algumas pessoas que se declaram "progressistas"), pois seu poder explicativo e relevância têm um caráter inegável em alcance explicativo e enfrentamento crítico de ideologias sociais quiriárquicas que se beneficiam de essas coisas serem consideradas separadas, independentes, já superadas, etc. É uma manobra eficiente por parte de alguns pensadores quiriarcas fingir que "já temos progresso o suficiente" ou que "cada coisa é uma coisa" e acusar de radicalismo ou revisionismo o avanço das análises.

Espero que essas pessoas possam temer e tremer perante o avanço da práxis que essa teoria fomentará.

MORTE a quem se interpor à libertação humana, animal e ecológica.


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