Jhana (dhyana) e meditação

Estamos num período da história contemporânea no qual ideias de muitas culturas são acessadas no mundo todo. É bem verdade que ideias de culturas diferentes não são apresentadas sem uma adaptação à cultura onde são introduzidas. Isso é inevitável, dada a compreensão diferente que um conjunto de visões de mundo imprime à leitura da ideia em si e das práticas que depreendem de sua aplicação ou apreciação.

Na Europa e na América, ideias asiáticas começaram a ter um impacto maior a partir do século 19, quando passou-se a investigar essas culturas com as lentes de muitas áreas de pesquisa. Gerações e gerações de pesquisadores têm olhado para as filosofias e as religiões do leste asiático com curiosidade, admiração, crítica e diversas atitudes. Comparações e paralelos tem sido feitos e desfeitos. Compreensões mais "purificadas de contaminação eurocêntrica" movimentam renovadas interpretações, traduções e até a criação de instituições mediadoras do acesso a tais acúmulos.

Pensando na meditação como um dos elementos leste- e sul-asiáticos que encontra grande repercussão na Europa e na América desde o século 19 e que teve um boom nos anos 1960, podemos constatar com uma rápida busca que o assunto não esfriou. Pelo contrário, centenas de milhares de pessoas buscam a meditação como meio terapêutico, espiritual e religioso para promover mudanças de estilo de vida e mesmo alcançar realizações místicas. Grupos diversos de diversas orientações teóricas tradicionais e nem tão tradicionais têm propagado métodos de meditação dos mais diversos, criando um mercado imenso de livros, retiros, workshops, grupos de prática e seitas religiosas/espirituais.

Fica muito interessante quando pensamos que meditação é uma palavra europeia (mais precisamente latina), mas que ficou associada à essas práticas leste- e sul-asiáticas. Se falamos em alguém meditando, logo se pensa numa pessoa sentada, de pernas cruzadas e mãos "segurando pontas" ou aninhadas no colo.

Porém, a palavra latina meditação não tem uma relação estreita com essas práticas asiáticas. Na Ásia, o termo original para esse tipo de prática contemplativa é jhana (em língua páli) ou dhyana (em sânscrito).

No latim, meditar tem o sentido de contemplar alguma coisa profundamente e ter momentos introspectivos. A religião cristã, a partir de suas tradições monásticas, introduziu a meditação à respeito de verdades divinas como uma prática religiosa. A oração e o trabalho e o silêncio seriam pilares para a percepção mais profunda da vida a partir de um estilo de vida voltado à contemplação.

O que é curioso é que a meditação cristã (e outras inspiradas nela presentes no judaísmo e no islã) pode ter sua origem num contato entre asiáticos e egípcios no início da era cristã. O monasticismo cristão muito provavelmente nasceu desses contatos culturais, e com ele a adaptação de certas práticas asiáticas ao contexto cultural da cristandade norte-africana e, posteriormente, europeia. Só que as tradições meditativas aqui e ali têm diferenças muito importantes, tendo desenvolvimentos totalmente diversos e metodologias sem relação.

Quando pensamos em meditação ao estilo jhana, a ideia que sobrevém a muites de nós é que é uma prática de esvaziar a mente, uma prática sem um objeto de contemplação que não o próprio vazio. Instrução ruim dada por pessoas despreparadas, clichês racistas e interpretações errôneas de pensadores da Europa reforçarão a ideia de que uma pessoa que pratica jhana está apenas com a cabeça vazia. Essa prática é considerada irracional ou anti-intelectual e pode parecer pouco atraente para uma pessoa que tem o pragmatismo do estilo de vida europeu/americano em mente.

De fato, muitas pessoas com quem converso sobre o assunto se declaram incapazes de meditar. E adcionam, às vezes, que não têm interesse em "esvaziar a cabeça", ou acham inútil/impossível fazer isso.

Seria realmente bem pouco interessante virar uma pedra imóvel. Se jhana fosse a respeito disso, eu consideraria uma perda de tempo tremenda e não praticaria. Porém, se trata de uma prática bem distante desses clichês sem fundamento: não se trata em absoluto de suspender o processo mental e virar uma ameba.

A meditação ao estilo jhana não é uma contemplação do total vazio, isenta de objetos. Sabemos que nenhuma experiência psíquica é isenta de objeto (segundo a psicologia). O que é preciso definir então é o objeto de jhana. Na verdade, temos um número de objetos: o corpo, os sentidos, as sensações, os estados emocionais e os conteúdos mentais. A própria experiência da pessoa que medita é o conjunto de objetos da prática, aquilo que se observa.

Jhana não se trata de um conjunto de práticas ascéticas e/ou místicas. Se é bem verdade que na Ásia jhana foi historicamente praticada quase sempre por pessoas monásticas, também se pode dizer que jhana superou o contexto religioso que promoveu sua popularização. A prática enriqueceu profundamente com a superação desse paradigma. Considero que é mais rica e mais alinhada com o conhecimento valioso da psique e da mente trazidos pela ciência contemporânea fora de escolas hindus, budistas e iôguicas.

Portanto, largaremos ideias de despertar espiritual, ascetismo e fenômenos sobrenaturais. Carga despejada! Velejaremos assim com mais eficiência.

A prática laica de jhana tem um potencial enorme de promover a inteligência intrapessoal, isto é, a capacidade de compreender a relação da psique com sua própria identidade e seus processos internos. É um modo de promover a relação da pessoa com suas ideias de eu, com seus estados de satisfação e insatisfação, e promover um conhecimento aplicável fora da postura sentada, que aprimora também nossas esferas extra-pessoais.

(É um auxílio também à filosofia, mas esse é um outro tópico.)

Recomenda-se que toda pessoa medite ao estilo jhana? Não. Nem todes se encontram prontes ou dispostes à acessar camadas menos conscientes da própria psique. Tem o mesmo risco que outras práticas psiconáuticas: pode fazer a pessoa reviver traumas, lidar com questões internas difíceis e desagradáveis e promover uma despersonalização que pode ser perturbadora.

Então, outro mito que devemos desfazer é o da meditação como uma prática benéfica e terapêutica. Se pode ter essas qualidades, pode também produzir desconforto de grau variável, o que faz parte dessa experiência.

A psiconáutica, isto é, a observação da própria psique em introspecção profunda não é uma disciplina suave e gentil. Não quero dizer com isso que a meditação é uma prática onde a suavidade a gentileza não são incorporadas. Pelo contrário: é necessário ter um grau elevado de paciência e amabilidade para com a nossa própria pessoa se queremos avançar nessa disciplina através da meditação. O uso de psicodélicos, por exemplo, é bem mais rude e agressivo, chutando as portas da psique para manifestar de modo mais imediato e avassalador os conteúdos interiores da mente inconsciente. Porém, a meditação profunda, difícil de obter, não é um fenômeno sutil e pode ter efeitos comparáveis à psicodelia induzida artificialmente por drogas. Talvez uma diferença importante é que a meditação não é sempre profunda e potente: pode ser muito sutil no início da prática, quando estamos aprendendo a acessá-la. As portas vão se abrindo conforme surge na pessoa o preparo para tanto.

É certamente uma experiência compensadora.

Eu sou ex-budista. O budismo no Brasil, em muitas correntes, é voltado para práticas meditativas, assim como na Europa e na América em geral (enquanto na Ásia, jhana é, em geral, muito monástica). A seita budista onde mais pratiquei foi o Theravada. Como doutrina moral, me causou muito mal-estar. Foi muito importante abandonar essa parte dos ensinamentos, mas a prática meditativa é um presente duradouro desse contato que aprimorou muito minha experiência de vida no cotidiano.

Nesse blog, descrevi uma "meditação libertária" que vinha desenvolvendo como crítica ao método tradicionalista. O nome vai ter que cair, porque não existe uma ligação tão intensa entre meditação e anarquismo político. Espero poder conhecer mais sobre técnicas laicas de meditação que já estão aí a décadas e elaborar muito mais no futuro. Seria conteúdo para outro blog ou feed. Veremos.

De todo modo, se você se interessa por meditar, recomendo conhecer o que puder sobre a disciplina laica da consciência (mindfulness), tomando cuidado com versões místicas ou comerciais que temos por aí. Um bom início é o livro "Viver a Catástrofe Total", de Jon Kabat-Zinn.

Comentários

  1. Olá!
    Adorei seu texto! Fiquei surpreso em saber que doutrina moral Theravada te causou mal estar; gostaria que você escrevesse mais sobre isso, se for possível. Eu pratico o Theravada, apesar de não me considerar budista e para mim, além da meditação, a doutrina moral sintetizada nos cinco preceitos é essencial, diria, que para mim, ela é mais essencial do que a meditação. Porém, não sigo os preceitos de forma dogmática e fundamentalista e nem os associo tanto assim mais ao budismo e sim como expressão de uma código moral laico fundamentado no amor próprio e nos direitos humanos.
    O que também acho curioso é o seguinte: você diz que "largaremos ideias de despertar espiritual, ascetismo e fenômenos sobrenaturais. Carga despejada! Velejaremos assim com mais eficiência." Penso que velejaremos com mais eficiência ainda se, em algum momento, conseguirmos largar também as ideias de "introspecção profunda", "conteúdos interiores da mente inconsciente", níveis sutis da consciência, etc.
    Adorei o blog, acho que visões críticas, educadas e inteligentes como a sua, são muito enriquecedoras para todas as pessoas curiosas que gostam de estudar! Abraços!!!

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