Meditação Laica - sua origem e potencial
A meditação no estilo jhana (sânsc. "dhyana") talvez seja a mais comum representação que a palavra "meditação" evoque hoje em dia: uma pessoa de pernas cruzadas na posição de lótus e as mãos descansando sobre os joelhos ou aninhadas no colo. O imaginário popular atribui a tal prática uma série de possibilidades: o poder de concentração até o “esvaziamento da mente", a "purificação" das energias (num sentido pseudocientífico da palavra), uma panaceia contra quaisquer transtornos mentais, poderes paranormais, a produção de experiências de transe e transcendência... Talvez até a iluminação! Apesar da romantização e da grave influência de crenças sobrenaturalistas asiáticas, existe alguma verdade nos benefícios para a saúde mental e física.
O jhana nasceu na antiguidade no subcontinente indiano (provavelmente entre os séculos X e VI a.C.). Ingressou no mundo como uma prática religiosa de seitas hindus. Sua popularidade fora da Ásia aumentou na segunda metade do século XX, quando movimentos religiosos asiáticos se espalharam nos Estados Unidos e na Europa inicialmente - do mesmo modo que acompanhou as diásporas de povos leste, sul e norte-asiáticos para outras partes do mundo, como a diáspora japonesa no Brasil.
As religiões darmicas de origem indiana normalmente não incluem a prática de meditação para o discipulado leigo como uma coisa comum, sendo mais reservada para pessoas monásticas, o sacerdócio e poucas almas realmente interessadas que passam por iniciações leigas. A maioria do público asiático do hinduísmo e do budismo pratica a devoção a entidades interventoras e recebe ensinamentos práticos para sua vida cotidiana: sermões reforçando os benefícios de um modo de vida tradicional e enaltecendo a caridade, a construção da família, a pátria, os cuidados com a saúde e obediência à seu dever social (papéis análogos aos da religião cristã aqui). Fora da Ásia, entretanto, a meditação foi vendida como uma das principais mais atrativas práticas "orientais".
Temos com isso um desenvolvimento nada tradicional nas versões branqueadas e “ocidentalizadas" do hinduísmo e do budismo. Incluíram daí pontos de vista políticos progressistas, defesa do pacifismo, combate do racismo, defesa de direitos das mulheres e populações LGBT, meditação e misticismo individual como o ápice de sua doutrina, projeção astral, benefícios milagrosos para a saúde e outras formas de propaganda sensacionalista. Apesar de todos os danos e confusões dessa invasão de versões "exóticas" e new age de cultos asiáticos, isso possibilitou às pessoas fora da Ásia acessarem a técnica.
Em sua história, o jhana teve como principais desenvolvimentos a sua criação no hinduísmo antigo, a sua apropriação e aperfeiçoamento pelo budismo primitivo, a sua readmissão no hinduísmo clássico, a redução do seu nível de asceticismo em versões reformadas dessas religiões e, finalmente, sua laicização já no mundo não-asiático.
Esse último desenvolvimento só foi possível devido ao ímpeto para desfazer mitos de pureza e elitismo dessa prática, movimentos que começaram ainda na Ásia. Comparando a prática do budismo primitivo com as versões medievais do Teravada, por exemplo, podemos ver a remoção de camadas moralizantes e míticas que a tornam inacessível e irreal. As formas de hinduísmo shivaísta, zen-budismo japonês e o tantra do Tibete nos mostram desenvolvimentos ainda mais inortodoxos que começaram na baixa idade média e acompanharam os séculos médios da modernidade europeia, quando se travaram os contatos decisivos para as primeiras observações detalhadas da religião e cosmovisão que ancora tais práticas por pessoas não-asiáticas.
Soma-se a isso que, a partir da segunda metade do século XX, desembarcaram na América e na Europa pessoas com sacerdócio tradicional visando propagar sua religião, o que já ocorreu um radical apagamento de sua raiz cultural. Muitas vezes, essas ideias foram apresentadas como “não religiões, mas filosofias”. Sem um fundo de devoção e rotina de templo, foram vistas como práticas terapêuticas para o público geral. Foi necessário simplificar e tornar aguada a prática da meditação asiática para que fosse transplantável, palatável e viável economicamente como produto. Essa pressão comercial gerou a produção de literatura sensacionalista e sincretismo com ideias new age.
Contudo, em algum momento audiências não-asiáticas se apossaram do jhana e desenvolveram sua própria leitura. Inicialmente, algumas pessoas não-asáticas se iniciaram nessas religiões de modo tradicional, angariando titulos de monasticismo e sacerdócio. Essa primeira geração de monástiques e sacerdotizes "ocidentais" realizou amplas traduções culturais e explicações mais contextualizadas. O contato do público geral com tal produção gerou estranhamento dos elementos religiosos e cosmovisões sobrenaturais “estrangeiras”, incluindo a rejeição de prática devocional e outros movimentos que expulsam o tradicional do seio da coisa. Em seguida, audiências experientes em prática meditativa desenvolveram a meditação divorciada das promessas despertar espiritual e transcendência, o que impulsionou uma série de estudos médicos baseados na psicologia, psiquiatria, neuropsicologia e outras áreas do saber médico, psicológico e terapêutico com base na ciência moderna. Isso incluiu a cooperação de pessoas monásticas e sacerdócio asiático, que surfaram também nessa onda laica por diversas razões. Surgiram especialmente no norte e leste da Ásia leituras que endossavam um “cientificismo darmico” (essa é a versão de religião asiática da “religião científica” que vimos também ocorrer com as religiões daqui de forma diversa).
O produto final é um jhana sem nibbana (sânsc. "nirvana"), sem budas, sem avatares e sem poderes mágicos e sem reencarnação, porém comprovadamente eficiente para a redução do estresse, tratamento de sintomas ansiosos, pós-traumáticos, depressivos e outros. Para o público geral, métodos como mindfulness tem sido promovidos com o fim do autoconhecimento e aprimoração da capacidade de "viver o momento presente" também fora do consultório de terapeutas.
É óbvio que um movimento laico de meditação produziu solo fértil para charlatanismo e práticas corporativas. Me vêm à mente os "7 minutos para dominar o mundo" e outros "hacks da vida" para se tornar uma pessoa produtiva. O mindfulness foi vendido como uma forma suportar a exploração capitalista de forma abnegada e lidar com “a catástrofe total” que é o mundo moderno. Em defesa desse desvio liberal, porém, podemos afirmar que o jhana tem sido associada com ideologias pacifistas e aceitação da exploração estatal muito antes do capitalismo em sua forma religiosa tradicional que cresceu e se manteve apoiando monarquias, suportanto sociedades patriarcais, justificando guerras e conformando classes submissas a "viver segundo seu carma".
Seria desejável e produtivo olhar para a prática ignorando as versões cooptadas pelo Estado na antiguidade e hoje, assim cortando fora qualquer resquício contraproducente de aceitação pacífica do mundo e gratiluminosidade.
A meditação laica é um projeto que pode desvelar não somente um potencial empoderamento individual para quem praticá-la, mas também contém as sementes de novos desenvolvimentos teóricos para o jhana em si, como técnica e como suporte de cosmovisões revolucionárias, tornando-o melhor do que suas versões que ainda têm resquícios de crença sobrenaturalista e discursos new age.
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