O livre-pensamento e a expressão religiosa minoritária

Uma das bases do pensamento anarquista, sedimentadas desde um espírito que supera contradições iluministas por uma saída radical, é o anticlericalismo e a oposição à crenças sobrenaturais e explicações dogmáticas, fundamentadas na autoridade espiritual. Bakunin denuncia, em seu escrito fragmentário "Deus e o Estado", que a religião é uma das bases ideológicas da exploração tanto espiritual quanto material da população por classes dominantes de líderes apoiados por sacerdotes (ou mistura das duas coisas, como reis que foram líderes de suas igrejas estatais, por exemplo).

Daí em diante, o anarquismo passou por muitas novas discussões, incluindo versões mais amigáveis à religião e abertamente confessionais. Contudo, essas seguiram sendo visões minoritárias, e uma das características dos amplos movimentos anarquistas se tornou o livre-pensamento. Com o advento de abordagens críticas ao método científico e ao que se chama incorretamente de "cientificismo" (uma suposta crença na ciência como uma nova religião), alguns movimentos anarquistas abraçaram uma defesa de ideias sobrenaturais de povos originários da América e de outras partes do mundo como saberes legítimos.

Quase ninguém no anarquismo está propondo que doenças são causadas por espíritos malignos ou coisas assim; o que se está legitimando aqui é um olhar para a distinta construção de saberes sem reforçar o eurocentrismo já tão firme, que vê como "atrasada" e "bárbaras" outras culturas e suas cosmivisões,  pregando uma superioridade do racionalismo nascido na Europa.

Na virada do milênio, o anarquismo social tem uma coleção ampla de escritos decoloniais, interseccionais e influenciados por outras linhas de pensamento que criticam seu próprio passado iluminista e centrado em ideias paternalistas em relação a populações não-brancas e não-europeias (estilo "a revolução virá para salvar as pessoas dessas superstições ridículas"). Coletâneas de textos anarquistas que se tornaram populares recentemente frequentemente listam experiências libertárias em continentes fora da Europa como exemplos do pensamento libertário. Com anarca-feminismo, queer e outros acúmulos que reforçam a interseccionalidade da análise, estamos num momento em que existe uma dissonância entre antifas homens cis brancos com roupas de couro preto repitindo bordões do século XIX e se sentindo ameaçados por uma proliferação de pessoas diferentes (não-homens, trans, mulheres, não-atéias/agnósticas, não-branques, não-ocidentais, etc.) que reclamam o anarquismo para si e não abaixam a cabeça.

E nesse debate, eu sou a pessoa antifa branca com roupinhas de couro e bandeiras rubronegras que odeia a igreja e quer que esteja em chamas; eu não entendo o respeito por ideias sobrenaturais de nenhum tipo e isso é um resquício forte de uma mentalidade livre-pensadora europeia. É difícil para mim tragar termos como "cientificista" e "positivista" em seus usos ofensivos, e eu tenho aversão extrema a coisas como homeopatia e psicanálise, que ainda sim são extremamente ocidentais; quem dirá crenças em espíritos ancestrais e coisas assim. Assim mesmo, venho descobrindo um universo de debates muito interessantes. Segue um acúmulo baseado em leituras de coletivos do mundo todo sobre a expressão espiritual/religiosa na luta por laicidade:

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A partir de uma perspectiva anarquista e interseccional, podemos entender que a irreligião e a expressão religiosa minoritária coexistem e se retroalimentam como formas de resistência em uma sociedade capitalista tardia, marcada pela opressão sistêmica e pela mercantilização de todas as esferas da vida, inclusive da espiritualidade.

O capitalismo tardio se caracteriza por uma concentração extrema de poder econômico e político nas mãos de poucas corporações e elites, o que tende a reforçar estruturas hierárquicas em todas as esferas, incluindo a religiosa. As religiões majoritárias, frequentemente associadas a essas estruturas de poder, acabam servindo aos interesses do status quo, legitimando desigualdades e naturalizando as formas de exploração econômica e dominação social.

Nesse cenário, a irreligião emerge como uma forma de contestação a essas estruturas autoritárias. Para as anarquistas, que rejeitam todas as formas de quiriarquia, o questionamento das instituições religiosas faz parte da luta contra a opressão sistêmica. A crítica à religião dominante muitas vezes se associa à crítica ao Estado e ao capitalismo, pois as religiões majoritárias frequentemente servem como pilares ideológicos dessas formas de dominação. Assim, a irreligião se fortalece como uma ferramenta de libertação individual e coletiva, buscando desmantelar não apenas a opressão religiosa, mas também as outras formas de controle associadas a ela.

No entanto, essa luta não é homogênea. Uma análise interseccional revela que a experiência da irreligião é diferente para pessoas de diferentes contextos de opressão. A irreligião para uma pessoa branca, de classe média, pode ser uma escolha relativamente "segura", enquanto para grupos marginalizados, como pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ ou mulheres, a relação com a religião (ou sua ausência) é frequentemente mais complexa. Para muitos desses grupos, as religiões minoritárias ou formas alternativas de espiritualidade (como religiões afro-brasileiras ou tradições autóctones da América) podem representar tanto resistência cultural quanto uma rejeição à imposição religiosa dominante, geralmente ligada ao cristianismo ocidental e à colonização.

A expressão religiosa minoritária, por sua vez, também desafia as estruturas dominantes. Ao buscar formas de espiritualidade fora das religiões hegemônicas, esses grupos afirmam suas identidades culturais, raciais e de gênero, rompendo com a narrativa monolítica que o capitalismo e o colonialismo tentam impor. Essa resistência espiritual fortalece a irreligião ao mostrar que a hegemonia religiosa não é natural ou inevitável, mas sim uma construção política e histórica. A diversidade de experiências religiosas e espirituais desafia a noção de que apenas uma visão de mundo deve prevalecer, o que também legitima a escolha da não-religião como uma forma válida de existência e resistência.

Portanto, tanto a irreligião quanto as expressões religiosas minoritárias funcionam como formas de contestação em um sistema capitalista tardio que tenta controlar todas as facetas da vida, inclusive a espiritualidade. Essas formas de resistência, quando vistas por uma lente anarquista e interseccional, são igualmente importantes na luta pela liberdade, diversidade e justiça social. Elas revelam que a libertação plena só pode ocorrer quando todas as formas de opressão—religiosa, econômica, racial, de gênero—forem abolidas, e quando houver espaço para uma multiplicidade de formas de viver e pensar o mundo, inclusive a escolha de não crer em nada transcendente.



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