Espiritualidade libertária
O que se conviu chamar de espiritualidade é uma forma de contemplação da própria mente, do próprio coração e emoções, relacionando-se com o resto da existência a partir de si.
Muitas pessoas a partir daí encontraram o êxtase da atenção básica em si e conseguiram apreender partes do funcionamento da construção da identidade própria e também no outro, em relação à construção simbólica, sensual e conceitual da identidade.
Tendo essa percepção, na antiguidade se usou metáforas de algo absoluto/transcendental (deus, todo, libertação, vazio, astral, etc.) para falar desse espectro "mais real" antes da experiência imediata.
A cultura forneceu as personagens e categorias para montar narrativas, que, tomadas como o cerne da questão, geraram a religião e seu papel social de dominação e justificação do poder.
Sacerdotes e religiosos que jamais experimentaram essa análise interna muitas vezes passaram a cuidar das narrativas e sua interpretação "verdadeira", enfeitando com rituais e teologias complexas, cheias de conceitos bem trançados que hipnotizam o intelecto e criam amplos castelos de nuvens.
O que sabemos desde o século 20 é que esse espectro interno do funcionamento da consciência e que pode ser a chave para entender nossa interação com um entorno necessariamente interiorizado pode ser compreendido sem as mitologias, sem os sacerdotes, sem alguém que detém a verdade, sem as cerimônias, roupas especiais e chapéus estranhos.
Descobrimos que esses homens (sempre homens) que governam a religião ou mesmo espiritualidade comercial "nova era" estão só defendendo seus interesses quando afirmam deter alguma coisa.
Nossa espiritualidade pode ser livre, uma experiência de auto-análise. Nosso coração é o campo do "sagrado", que perde a dimensão brega/mitológica e se torna apenas natural.
Não há mais virgindade e celibato santificados ou negação do mundo: o mundo é natural e compreender seu bom funcionamento mental envolve abraçar a realidade integral.
Não há mais drogas e transes ascéticos que façam ver com mais verdade: a percepção nativa entrega um quadro mais claro dos fenômenos e diminui a chance de desvios desnecessários.
Não acreditamos que nossa percepção é a realidade, entendemos que naturalmente temos uma percepção interiorizada do externo, mediada pelos nossos órgãos sensoriais e pelo arcabouço simbólico e conceitual que herdamos da cultura. Porém, compreendemos cada vez mais que há um real externo, o mundo de fato, que não é uma ilusão, e aprendemos a afinar nossas ferramentas para melhor se manifestar nesse plano.
Uma dimensão esquizóide é inevitável em todo indivíduo dada a individuação, que aliena em si a persona construída para a sobrevivência e reprodução espaço-temporal, mas o que significa a ideia de sabedoria?
A visão "além do mundano", penso, se manifesta quando o aspecto individual não causa a cegueira de confundir nossa percepção e nossos conceitos com o todo do real. A "mente aberta" da pessoa sábia que aceita a complexidade e a alteridade, o que significa mediar melhor a existência interna com o entorno.
Qualquer doutrina religiosa fala de modo ignorante do todo do real como se fosse idêntico à suas explicações. Isso é parte do truque de ilusionista do sacerdote e religioso para sequestrar nossa inteligência e obter de nós a obediência.
A ciência também possui limitações nesse campo, defendendo o todo do real como modelos "materialistas" ou "holísticos", porém apresenta uma revolução em relação ao modelo anterior, dada sua retratabilidade.
Aquela pessoa que busca o espiritual no século 21 faria bem em ter em mente essas questões ao praticar o exame da sua consciência e compreender a natureza da construção do eu, algo isento de aspectos inerentes, sempre localizado, porém passível de expansão e abertura.
14/05/20 - São Paulo
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