A espiritualidade da matéria e a materialidade do espírito
Salvando a espiritualidade e o autoconhecimento dos discípulos do nada
A palavra "espiritualidade" hoje pode ser vista como sinônimo de algo esotérico / essencialista, ou seja, a busca de uma conexão com um universo energético que tem consciência (uma ideia humana de consciência) ou que pode proporcionar vantagens e enriquecimento espiritual à pessoa que empreende essa busca. Poder-se-ia pensar que uma divindade criadora, uma inteligência desencorporada que se importa conosco e que é toda benevolente deseja se relacionar conosco. Ou há um darma, uma lei do cosmo que podemos aprender a cavalgar para além da razão e emoção confusas, atingindo um despertar da consciência. São ideias que a humanidade construiu do que é espiritualidade e que condizem com culturas onde havia uma ideia teleológica (existe um objetivo para a existência), metafísica (a possibilidade de um fundamento da existência além da realidade material) e ascética (uma ideia de que a vida psicológica real e o mundo como descrevemos materialmente são de uma qualidade ruim a ser superada e transcendida, atingindo um estado superior que é do além).
Espiritualidade não necessariamente tem a ver com nada disso. Em outras palavras, não necessariamente está no domínio das criações religiosas e esotéricas. Na realidade, a espiritualidade tem uma qualidade de experiência intra e extrapessoal, da relação de si mesmo com a realidade à luz de nosso desconhecimento e nossa experiência com essa realidade. Para mim, a espiritualidade pode e deve ser um empreendimento filosófico e existencial em si, que tem uma relação com o conhecimento (ciência), a ignorância (lacunas na nossa ciência), ética, política e psicologia.
Muitas pessoas pedem para eu separar o aspecto religioso/esotérico do político, mas crenças têm consequências materiais e isso produziria uma perda irreparável para a busca espiritual. Não há uma separação na ecologia das relações sociais, culturais e psíquicas que permita colocar a política fora, pois ela está determinando as possibilidades dessa descoberta individual e é por ela influenciada. É preciso negar o religioso/esotérico a cada passo da descoberta da realidade. O tipo de evidência e as consequências da crença nos três enganos históricos (teleologia, metafísica e ascese) são coisas que temos que expor e superar para o desenvolvilmento saudável como pessoas e sociedade.
A mente humana é muito rica em estados bem diferentes da experiência cotidiana. Estados neurológicos atípicos podem surgir sozinhos (acontece com aproximadamente 10% das pessoas), podem ser induzidos em situações de culto religioso, via hipnose, usando drogas psicodélicas, praticando a meditação, repetindo mantras e até mesmo com estímulo eletromagnético! Alguns cientistas conseguiram induzir a experiência de “sair do corpo” com estímulo elétrico com sucesso. Mas há um erro entre confirmar uma experiência psiconáutica e a afirmação de alguma mitologia como interpretação dessa experiência. Em outras palavras, ter uma experiência não necessariamente significa entender essa experiência, muito menios torna a pessoa uma autoridade no assunto da experiência. E as explicações que envolvem um espírito, essência, darma ou deus estão se provando improdutivas e erradas com novas descobertas.
Embora seja um campo recente, a neurociência vem testando experiências de “saída do corpo”, efeitos da meditação para a felicidade e constituição neural, e até mesmo as famosas experiências de quase morte ou projeão astral. Até agora, nenhuma vez a teoria de uma alma imortal ou mente incorpórea produziu nenhum resultado: produzem "evidências" e resultados em ambientes onde as pessoas estão propensas a crer e onde não há nenhuma verificação sendo conduzida: evidência anedótica e wishful thinking ("querer acreditar"). Sobre o escrutínio de estudos com método, jamais conseguiram nenhum resultado que evidencie uma substância extra-corpórea consciente.
Mas ideias resistem fortemente aos tempos: ainda sim, as pessoas acreditam muito mais nesses relatos e nas explicações que os acompanham do que duvidam deles. Podemos entender o lastro histórico desse tipo de explicação, pois a pouco tempo mal se considerava a ciência das experências psíquicas fora do ordinário. Podemos ter em vista que, olhando de modo acrítico, esses relatos “confirmam” cosmovisões em que isso pelo menos é levado em conta e não ridicularizado. Em outras palavras, estamos substituindo a apreensão da realidade pela tentativa de justificar alguma teoria somente porque essa teoria pelo menos existe, sem olhar para seus gritantes deméritos. Trocamos a franca admissão do que ainda não sabemos pela interpretação forçada de nossa experiência extraordinária por meio desses mitos (é o que são), e, com esse tipo de confiança tola em pessoas "espirituais" esotéricas e religiosas, ficamos vulneráveis à religião como modo de controle dos corpos e mentes, ao charlatanismo endêmico dessas instituições e ao autoritarismo como princípio de mediação entre nossa busca da verdade e o real.
Esotéricos e religiosos invariavelmente, mesmo nos esforços mais "laicos", têm uma leitura fundamentalista envenena o empreendimento espiritual: mesmo trai seu propósito. É a doutrina do nada. Há muito tempo seus discípulos têm tido o monopólio dessas questões, mas a espiritualidade realista está chegando para realizar a anarquia nessa esfera, lado a lado com a revolução social, cultural e científica que varrerá outros aspectos já superados da espiritualidade e das relações humanas.
Definindo a espiritualidade e os seus objetivos
"Espiritualidade" é uma dessas palavras carregadas que têm muitos significados em disputa e cujo uso invoca muitas coisas diferentes. Qualquer palavra em si tem a propriedade de poder ter muitos significados (é polissêmica). Quando se trata de palavras, não existe uma definição “correta” evidenciada por etimologia nenhuma. Nenhum uso é mais autêntico que outro. Todos os usos são mais ou menos adequados ao seu contexto, especialmente se há um esforço para evitar ambiguidades nessa interpretação. Eu vou definir aqui o que quero dizer com espiritualidade nesse texto, e o que considero um uso inadequado para meu próprio ideal de empreendimento espiritual.
A palavra claramente tem sua origem no termo “espírito”. Em latim, a etimologia da palavra é direta: “spiritualitatem” é um temo do latim tardio (aquele do início da era cristã). Nesse uso, ele é relacionado com a palavra mais antiga “spiritus” (“espírito”), e também com “spiritualis” (“espiritual”). Todas essas têm em comum a raiz verbal “spir-”, do verbo “spirare” (“respirar”). “Spiritus” em si significava “respiração”, “vento”, “brisa”, “fantasma”, “alma,” “energia” e “arrogância”. Assim, em usos latinos da palavra, nem sempre se referia à uma alma imortal ou entidade extrafísica, mas muitas vezes ao vento e à respiração, ao vigor físico (que era associado a "ventos" dentro do corpo) e ao estado de ânimo ensimesmado.
Deixando de lado a etimologia latina, o uso ao longo da história esteve lado a lado com religiões tradicionais e com esotérico, sem dúvida. Quando eu falo “espírito”, muitas pessoas logo pensam em fantasmas, parentes mortos, entidades abstratas e outras figuras do gênero. E isso tem todo um arcabouço textual e tradicional: está presente na cultura e em ideologias religiosas e esotéricas muito relevantes e de grande peso ao longo da história.
Porém, há usos correntes que não podem ser ignorados de “espírito” e “espiritual” para significar ideias, intelecto, pensamento, compreensão e coisas relativas ao universo psíquico sem nenhuma conotação dualista (ou seja, sem a ideia de que existe corpo e alma separadamente). Por exemplo, o sociólogo e militante anarquista e ateu Mikhail Bakunin escreveu numa carta à sua amiga Matilde Rachel:
"As tempestades no mundo moral são tão necessárias quanto na natureza: elas purificam, rejuvenescem a atmosfera espiritual, elas desenvolvem as forças sonolentas, elas destroem o destrutível e dão ao eterno vivo um brilho novo, que não se pode apagar. Na tempestade, respira-se mais facilmente; é somente no combate que se aprende o que um homem pode, o que ele deve, e, na verdade, uma tempestade semelhante era uma necessidade do mundo atual, que estava bem perto de sufocar com seu ar empestado." (grifo meu)
Em outro exemplo, o famoso sociólogo comunista e ateu Karl Marx escreveu num dos textos que compõe a coletânea “A Ideologia Alemã”:
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual.” (grifos meus)
Aqui, podemos ter uma clareza de usos de “espiritual” (que, nas línguas de origem, é um sinônimo bastante perfeito) para significar algo próprio das ideias, intelectual, cultural, próprio do pensamento, próprio do discurso coletivo da humanidade, mas jamais relativo a assombrações.
Não somente pensadores materialistas usaram a palavra espiritual com esse fim; se trata de um uso perfeitamente apropriado da palavra “espiritual” e mesmo “espírito”. Um brasileiro poderia dizer: “Joana tem uma presença de espírito que faz toda a diferença na reunião”. E com isso, não estaria propriamente falando de algo sobrenatural, mas algo perfeitamente psicológico. Eu poderia dizer que "o ganho espiritual do estado laico se evidencia nos avanços das ciências psicológicas", o que é uma frase que escanece da ideia de assombrações.
É preciso especificar que, ao falar de materialismo, estamos falando da doutrina filosófica que admite e estuda o mundo com o único recorte do que é natural (tal e qual descrito pelas ciências naturais). Assim, ideologias, ideias, religiões, tradições culturais e conceitos na sociologia materialista não são considerados como separados da realidade material. Para o avanço das ciências físicas, biológicas e humanas, foi importante se desvencilhar de uma obrigação de olhar para uma essência, determinação divina ou caráter perene da realidade extra-física.
As pessoas envolvidas nesses projetos materialistas e naturalistas não se tratam de pessoas que dispensam de um rico universo interior. Para essas pessoas, existe mais potente do que para religiosos e esotéricos a possibilidade de auto-conhecimento, moralidade e da própria sabedoria. O amor à sabedoria (filosofia) exige olhar a realidade nos olhos e descartar ideias confusas e que adcionam problemas sem produzir nenhum ganho explicativo e sem nos aproximar da compreensão das causas e condições observáveis.
Toda essa discussão que eu introduzi aqui e todos esses conceitos são importantes para compreender por que a ideia de “espiritual” e “espiritualidade” dos discípulos do nada é ruim e é contra meu ideal de espiritualidade, que seria a perseguição de um conhecimento intra e extrapessoal de qualidade e que permite se relacionar positivamente com a própria mente em si e com a cultura, a sociedade e o mundo natural.
Qual o ganho dessa cosmovisão espiritual sem assombrações, sem fins e sem transcendência? Por um lado, nos permite a melhor meditação possível (que é o que venho experimentando ultimamente e que delinearei em futuros textos); por outro lado, desfaz ideias muito ruins de uma meta espiritual, de responsabilidade individual por nossos próprios problemas psíquicos e materiais, e, por último, permite se desprender de ideias ascéticas e suas consequências políticas e existenciais terríveis.
A imagem ilustra uma pessoa ao longe. A pessoa está de pé na orla do mar. A areia molhada espelha sua silhueta nitidamente.
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