A meditação libertária
O ideal libertário envolve uma busca de emancipação humana e a construção do potencial humano ao máximo. Ele questiona qualquer idolatria, confusão, qualquer forma externa ou introjetada de autoritarismo. Com isso, o florescimento da espiritualidade é o maior possível quando o ideal libertário é internalizado.
A prática da meditação para mim foi adquirida dentro de ideias ascéticos: fui budista e aprendi métodos de meditação tradicionais do theravada, do zen-budismo e do dzogchen, tradições que possuem lastro nas doutrinas ascética do buda. Além disso, tive contato com o mindfulness, tradição laica que ainda tem muito lastro nesses ideais. Qualquer vestígio de doutrina do além é muito!
Por isso, o que tenho a oferecer falará mais a quem já medita num ideal esotérico, para quem já tem alguma prática contemplativa ou de internalização. Não tenho um manual positivo a oferecer ainda, mas um manual de desconstrução do sagrado, pois é onde me localizo hoje. Passei semanas sem meditar para me desintoxicar das instruções recebidas de pessoas instruídas no asceticismo.
É preciso definir aqui o asceticismo: a ideia não é apenas a ascese do buda ou de monástiques isolades que praticam o celibato e a restrição alimentar, entre outras formas de evitar o contato com "prazeres sensuais", seja o que for isso. Mesmo budistas de via hindu (bodisatvas e não-dualista) ou métodos do yoga contemporâneo (vedanta não-dual) são também ascéticos no sentido dado por Nietzsche, que significa a mentalidade de que existe um sentido esotérico para a existência, um estado de não-pensamento, a suspensão da identidade ou o estado de transcendência ou qualquer suspensão do ponto de vista.
Todos os ideais que buscam suspender o pensamento e alienar a pessoa de si, de suas sensações e corpo, de seus desejos e aversões naturais e rotular de algum modo pejorativo a experiência emocional são formas de controle mental.
Para a pessoa acreditar na transcendência, precisa praticar sob constante sugestionamento: a ritualística e a repetição entrarão com tudo. A pessoa apelará para recitação repetitiva de ladainhas, fará reverências a estatuária e rituais para criar uma atmosfera irracional e consumirá literatura ou fará cursos intensivos de "treinamento mental" (doutrinação) que sugerem a existência de uma experiência extramundana. Para não surgir crítica, a pessoa enganada praticará a interrupção do pensamento através de transe programado e segue passos no cultivo de uma suposta testemunha além da própria persona. Pode ser que pratique oração, diálogos com entidades ou outras formas de auto-hipnose: métodos de rendição do ego e de alienação da experiência são partes do ideal ascético. O objetivo é "comprovar" através dessas experiências que o "despertar" é verdade.
É bem engraçado isso, porque na verdade o que essas experiências provam é que o êxtase é possível com estímulos internos ao cérebro (que são inclusive estímulo sensorial) e que o poder de métodos de sugestão produzem ideias fixas. O que não comprovam é nenhuma mitologia. Comprovam que mestres e gurus nos fazem de fantoche e querem ser uma voz dentro de nosso cérebro (como qualquer sacerdote ou pessoa mediadora da busca espiritual).
Experiências "sobrenaturais" como regressão, fusão com "o universo", paralisia corporal, clarividência, dupla visão, desdobramentos, satori, jhanas etc. são estados de consciência alterados que receberam etiquetas e explicações mitológicas. A ciência neurológica nos mostra como sempre são estados cerebrais e não extra-corpóreos ou mágicos. Podemos nos desfazer de ideologias de uma alma ou mente independente do cérebro e explicações que buscam "comprovar" essas verdades através dessa alteração natural da consciência. A religião monoteísta e o esoterismo espiritualista usarão o mesmo tipo de manipulação para convencer a pessoa a personificar diálogos imaginados ou presenças percebidas que existem na mente.
É preciso reforçar esse ponto: não há uma realidade mágica ou esfera supraterrestre. Não há alma, essência, espírito imortal ou processo mental extrafísico. A consciência é um fenômeno cerebral incorporado. Experiências "fora do corpo" são percepções extraordinárias do cérebro, sem de fato haver fenômenos reais desse tipom Nunca se produziu evidência em favor, muito menos indícios de qualquer dualismo (corpo e espírito separados); energias que saem da sua mente não modificam a realidade; orar não funciona; magia é auto-sugestão; pedras e cristais não soltam raios magnéticos que afetam seu "chacra" ou "chi"; ervas e plantas afetam a bioquímica do corpo, mas aromas não possuem poderes mágicos.
E os aliens não estão abduzindo as pessoas.
A ética libertária exige de nós uma espiritualidade materialista e exige que o "uso benéfico de mentirinhas inofensivas" seja considerado uma ofensa desde o princípio. A verdade nua e crua são o objetivo do projeto libertário de espiritualidade. Na busca espiritual, a experiência psiconáutica pode ser interpretada por nós mesmos, botando fogo nos pergaminhos. Assim, poderemos ir mais longe; na verdade, poderemos ir a algum lugar.
Quando não temos mais o ideal ascético, rotulações que demonizam o desejo e a aversão têm que acabar. Qualquer tipo de ideia de suspender-se de sua própria mente e atingir um finalismo extático deve ser deixado de lado.
A meditação é atenção somente no momento presente? Dizer que só existe o presente seria negar o que sabemos sobre o espaço-tempo. Não é desejável atingir uma suspensão da atividade mental e nem focalização num tempo sonhado. (Não estou sugerindo ideias hippies de experimentar outras dimensões.)
Os discípulos do nada construíram edifícios de destruição da espiritualidade humana para nos tornar insensíveis e retirados do mundo, mas a espiritualidade libertária é real e mundana. Se trata da busca no corpo humano real e localizado no espaço-tempo. Tem um projeto político. Sua mera existência é resistência ao asceticismo; seu objetivo é revolucionar a pessoa por dentro, demolindo a construção ascética que foi introjetada até na ideia de espiritualidade: mentiras cruéis e métodos de controle. O objetivo do asceticismo é retirar o corpo-mente de seu papel político e retirar a política da prática, algo que só seria bom para o poder estabelecido.
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A meditação libertária é a gradual morte da quiriarquia introjetada na própria pessoa.
Quiriarquia significa "governo das hierarquias de submissão". Nós temos isso dentro de nós, ideias que nos fazem tiranizar até a nós mesmos: esse pensamento é inferior, essa sensação é má, esse desejo é errado... Bom é ser uma pessoa humilhada, sacrificada, inofensiva, apassivada, pisoteada, livre de desejos intensos, de aversões, de força vital, de opinião forte. A pessoa doutrinada não deveria ter qualquer ideia na mente além de [adcione aqui mitologias ascéticas como obter a iluminação, deixar a condição humana para sempre ou morar com amida/vixenu].
O próprio ideal ascético, a ideologia de que existe algo errado na condição normal da mente humana e na existência natural é uma forma de colocar a pessoa contra si e contra a realidade, destruindo sua capacidade de compreender a mesma e interagir consigo e com as outras pessoas. Ideias falsas nublam sua percepção e afetam seu julgamento a todo momento, podando seu potencial.
A ideia de uma realização transcendente não representa nenhum ganho para a pessoa que busca, apenas para quem está lucrando com sua imobilidade e ruína moral. Mantém os templos abertos porque o sacerdócio é o sócio do poder, encoleirando a humanidade e a fazendo definhar.
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O meditador não precisa estar sentado com uma perna aqui e outra ali. A posição das mãos não importa nem um pouco. Não existe nenhum efeito mágico em imitar a postura de algum buda doutrinador ou outros discípulos do nada.
A posição com as pernas cruzadas, com as costas retas etc. só pode ser boa para quem está confortável nessa posição ou a cultiva com o fim de não ter sono. É uma posição boa para respirar se não tivermos muita gordura abdominal. Meditar sem dormir é mais fácil sentada do que deitada. Mas pode se meditar deitada, numa cadeira, andando, de pé... cada corpo se adaptará de modo diverso.
Meditar "em silêncio" funciona para algumas pessoas? Não existe silêncio. Mesmo florestas e bosques têm sons, assim como cidades. Aprender a lidar com ruídos externos e discursos mentais é necessário. Para certas pessoas, meditar com música funciona melhor. Eu prefiro ruídos ambientes. Novamente, cabe a cada qual decidir.
A maior parte das meditações guiadas é a sugestão mental pura: você deve experimentar o que aquela voz hipnótica está ditando. Seria melhor sua própria psique guiar-se a si mesma pelas questões que deseja abordar ou que surgem. Aprender a meditar envolve ficar na posição de meditação sem saber o que está acontecendo algumas vezes. Ou sem receber estímulos. Não tem nenhum erro nisso. Meditar não é para ser uma atividade exatamente estimulante.
É possível meditar em algo: um assunto ou reflexão que você estabeleceu para desenvolver. Temos que ter claro que ninguém pode nos dizer que meditar em algo não é meditar. Algumas pessoas têm esse cabresto. De onde tiraram isso? De doutrinação castrante. Muitas pessoas por milênios têm obtido maravilhosaa percepções meditando em algo. Inclusive questões de sua psique podem invadir outro processo e isso ser proveitoso.
A meditação pode ser a auto-análise ou uma terapia de si, um modo de não julgar os próprios estados corporais, sentimentos, mentais e existenciais, mas sim compreendê-los organicamente, avalia-los em si mesmos e notar aspectos nada óbvios destes.
Uma meditação que eu herdei do budismo (mas retirei de seu contexto da "pura testemunha") é a percepção dos estados de corpo e mente que surgem (sensação corporal, respiração, sentimentos e pensamentos) conforme surgem, sem que haja uma focalização na discursividade mental. Eu percebo que esse tipo de meditação é mais produtiva na lógica da não-meditação, ou seja, sem que haja nenhum propósito que não estar percebendo até mesmo a própria percepção.
Para combater uma suspensão do pensamento, eu me desfiz de qualquer ideia ascética de que seja possível "sair de si" ou "não-pensamento". O pensamento sobre o pensamento é um pensamento, é o meta-pensamento. A percepção humana sempre atribui significado e signos até em conceitos abstratos, e isso não tem interrupção possível ou desejável. A meta-sensação é uma sensação. O meta-testemunho é um testemunho.
O ganho da prática não está em ignorar o indesejado na experiência, mas experimentar a totalidade da experiência. Ideais ascéticos tiram o corpo-mente do processo, buscando anular a existência do sujeito, algo que só pode ser danoso. Estejamos no processo totalmente e integralmente, seja como for este.
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Ser profundamente humano e ter a mente afeita ao seu natural faz com que a meditação tenha apenas o ganho de aprimorar o auto-conhecimento. Pensar assim tornou minha meditação muito melhor. Encarar a realidade no olho era minha finalidade mesmo quando estava doutrinado no asceticismo. As ideias de "pura razão" e "suspensão da identificação com sua própria mente" me afastaram, assim como o asceticismo bruto da tradição que eu seguia. Era um budismo com um sacerdócio de monástiques celibatáries que fazem jejum todo dia, perdiam sua família e seu nome, o direito de dormir mais que algumas horas, as posses etc. O seguidor da vida leiga (não monástique) recebia recomendações de maneirar na comida, dança e artes. O sexo era considerado bom na monogamia obrigatória, senão era desejo desgovernado. A própria prática leiga era definida pela família tradicional; é um discurso do quiriarcado.
Sou grato por não ter me enveredado por seitas não-dualistas, pois seu asceticismo é disfarçado de uma boa relação com coisas do mundo. "Samsara = Nirvana". Só que esqueceram que não existe um despertar e que não há nada errado com a vida normal. Não é preciso igualar a realidade "mundana" com o nada para torná-la melhor. Mas as cultistas do nada não operam isso com o melhor em mente: elas pretendem nos manipular fazendo concluir que "se o mundano é igual ao nada, então nada é real".
É muito mais pernicioso do que o asceticismo bruto dizer que é tudo uma ilusão ou fantasia. O resultado é tornar a pessoa indiferente à suas próprias percepções e intelecto, se tornando uma escrava muito mais manipulável. Esse tipo de ideias já justificou guerras e colonização na história! No mínimo torna a pessoa uma espécie de ser alienado de si e da vida, emulando a perfeita cidadania da civilização escravista
Não se enganem! O mundo é real! Suas sensações e identidade importam! Não há leis místicas nos protegendo, então mos protejamos. A revolução necessita de toda nossa humanidade contra a normalização da exploração capitalista e suas ideologias acessórias; entre elas todo tipo de asceticismo.
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Se o objetivo de uma doutrina social, política ou espiritual não for a revolução, essa doutrina é ascética. Até mesmo Nietzsche tem seus momentos de asceticismo, quando prega ideais individualistas e de indiferença à ecologia social.
Algo que o budismo mais hindu (bodisatva e não-dualista) foi capaz de dizer de modo bom é que tudo está interligado e se influenciando incessantemente. Só que sua interpretação do fato foi ascética: concluiu daí que devemos despertar para além dessa processo de condicionamento, se tornando uma espécie de divindade no panteão dos bodisatvas e budas. Dizer que o além está dentro do processo não torna melhor, mas pior, como disse acima. Além de não ter coerência interna com a lógica do seu próprio arcabouço teórico.
Agora, a doutrina que separa o aspecto sociocultural do universo do político e do que é propriamente espiritual também é danosa em si por causa da interdependência que ignora, dessa completa impossibilidade de retirar o indivíduo do processo coletivo e da ecologia socioambiental. Basicamente, essa alienação é a função social da doutrina ascética. A filosofia anarquista entra aqui como algo fundamental, pois denuncia esses procedimentos de despolitização para a dominação. O descarte das mentiras supersticiosas é um produto desse processo de realismo extremo.
Lembre-se que não há darmas e divindades guiando o processo, não há justiça cósmica ou anjos da guarda invisíveis e isso importa, pois esse mundo e esta vida têm que ser o todo da realidade. A espiritualidade libertária é a neuroética da libertação humana e animal aqui e agora. É o fim das demagogias. Não há que justificar o injustificável.
Nós gastamos muito tempo e energia buscando nos adequar a ideais que não têm relevância e tentando diferentes cabrestos para ver qual permite ver melhor. A espiritualidade libertária é a abertura de visão total, jogando no lixo todos os cabrestos e tornando o projeto meditativo algo possível, saudável e dirigido pela parte interessada.
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