O ódio é fundamental
Muito mal compreendido, o ódio é um termômetro importante para o amor.
Pessoas que alegam amar todos sem distinção na verdade são hipócritas, pois isso é impossível e indesejável. Na economia das relações, algumas pessoas têm o interesse exclusivo de promover seus interesses individuais; na verdade, independente de quão amoroso seja seu discurso (ou até "transcendente do ego"), toda pessoa tem seu interesse pessoal em mente, com exceção de pessoas num estado extremamente depressivo que se manifesta como auto-destruição. Algumas pessoas argumentariam que mesmo a mentalidade suicida ou abuso de drogas pesadas é um gesto que busca satisfação de algum anseio. Mas num funcionamento menos atípico, qualquer pessoa protege seus interesses. A boa vizinhança e a reputação de boa pessoa são uma poderosa armadura!
De defender seus interesses, algo natural, a opor seus interesses aos de outrem e com isso danifica-les vai por um processo de complexidade das relações sociais e políticas; pessoas têm uma tendência a se organizar em facções que disputam por recursos. Se num tempo muito antigo isso era mais voltado à sobrevivência em si, hoje podemos dizer que está relacionado com a sobrevivência de sua identidade simbólica, sua percepção de valores morais e significação de mundo, etc. Essa competição tem implicações para a vida material também, obviamente, porque a associação ou dissociação de indivíduos se manifesta num mundo de antagonismo ideológico e material. Produz luta física e exploração do trabalho. Exemplos: a exploração capitalista do trabalho, a chacina de travestis e transexuais no Brasil, a mortandade de cristãos na Síria por parte de jihadistas, a exploração do trabalho doméstico e planejamento familiar das mulheres por parte de homens, salários e oportunidades diferentes para pessoas de raças/etnias não-brancas, etc.
Num nível menos crítico, olhando pelo senso comum, o antagonismo de classes sociais, religiões, raça/etnias, gêneros, expressões sexuais e ideologias políticas podem parecer dissociados entre si. Pode parecer que são acidentes de um contexto que precisa ser ignorado para ser vencido: vamos tratar todo mundo igual que muda. Poderíamos falar de uma união humana que supere todos esses laços caso fossem mentalidades que podem ser suspensas por uma ideia coletiva genérica: um amor universal ou coisa assim.
Observando com as lentes da crítica, porém, nada disso é apenas uma opinião ou uma mentalidade que pode ser suspensa. A construção da individualidade, que eu chamarei de assujeitamento aqui, está presa, entranhada em processos inelutáveis que atravessam a persona tão constitutivamente que resistir ou suspender ou mesmo desconsiderar isso em seu modo de sequer começar a pensar a vida é algo que cai por terra, uma impossibilidade absoluta. Toda ideia de livre arbítrio precisa ser descartada se formos compreender esse processo de verdade, pois suporia um estado de indeterminação e capacidade de se erguer para além de si mesmo que não tem referente na realidade. Estamos sempre determinados.
O primeiro assujeitamento é o que poderíamos chamar de "natureza humana", embora a expressão seja ruim. A expressão genética tem uma determinação muito forte em comportamentos, preferências, disposições e tendências. A grande maioria do material genético (99%) é compartilhado entre a humanidade, sendo uma expressão de 1% a individualidade de uma persona específica. No campo do materialismo, muitas pessoas rejeitarão isso, mas temos pesquisas bem importantes no campo, como a de Robert Plomim, professor de King's College London, e de seus colaboradores, além de outres. Suas conclusões, que alguns taxaram como determinista, apenas afirmam que a constitutividade natural do humano implica algo e que tem referentes universais aí.
É bem verdade que certos reacionários usarão disso para afirmar o sexo biológico acima de gêneros ou a família tradicional como natural e outras ideologias burguesas ou maia retrógradas. Isso seria jogar fora nosso conhecimento mais atual. Seria ignorar que agrupamento familiar em muitas sociedades é totalmente diferente da família nuclear burguesa: temos modelos de criação comunal de crianças e paternidade irrelevante (por parte da pessoa XY), por exemplo; temos outros tipos de estrutura familiar, até mesmo sociedades com total comunalismo e nenhum clã. O corpo humano tem uma gama de expressões intersexo e, na socialização, as psiques têm expressões de gênero que não se limitam à ideia binária seja na história, seja na cultura européia. A não-binareidade de gênero se manifesta mesmo que negada, inclusive com representações simbólicas de inadequação ao normativo. Em certas culturas com aceitação, tivemos terceiro sexo, trans-humanismo ou dois espíritos. Foram as religiões extremamente patriarcais (judaico-cristãs, hinduísmo, budismo, etc.) que, de modo anti-natural, buscaram suprimir manifestações naturais de gênero e sexo fora do binário e cisnormativo. Buscaram fazer o mesmo para comportamentos variamorosos (não mono-heterossexual nem monogâmico).
É essa a importância de entender o também aspecto sociocultural que é iluminado pela antropologia, pela história e pela sociologia e que pode se auxiliar de modo determinante do nosso conhecimento de como se manifestam aspectos da institucionalidade social e relação de grupos em sua especificidade e na simbolização das relações. Isso pode dar conta das variações muito amplas, o que nos faria melhor jogar fora as lentes do ocidentalismo, ou, como prefiro chamar, eurocentrismo judaico-cristão. A maioria esmagadora das ideias europeias e mmonoteístas não têm universalidade na variedade histórica de manifestações socioculturais humanas. Seu peso atual se deve em parte à colonização e apagamento violento da multiplicidade de culturas e em parte à propaganda ideológica que cala o conhecimento do diferente cria ideias de universalidade falsas que pegaram a maioria da humanidade na maior parte da história. Foi por volta do século 19 que surgiram no campo antropológico, científico e político críticas à universalizaçãp forçada do judaico-cristocentrismo e do eurocentrismo que ainda precisam ser aprofundadas; precisamos desafiar toda noção que vem dessas fontes quando se apresenta como universal. Isso inclui desafiar os estudos de geneticistas brilhantes que nada entendem de ciências humanas e linguística e que acabam falando bobagem fora do seu expertise. Estão ignorando dados de outros campos.
É urgente desenvolvermos uma capacidade de se informar em diversos paradigmas.
No assujeitamento então temos em jogo esse fator biológico e esse fator de ambiente sociocultural, e ambas as coisas estão entrelaçadas além de qualquer divisão desejável. Em uma pessoa, esse contexto todo produz modos de se expressar e ser que estão em seu próprio modo de ver a realidade e até de fornular o pensamento e se relacionar com o conhecimento. Assim, os conflitos entre pessoas podem ter sua raiz no fato de terem determinações completamente divergentes, como:
1- ser de raça/grupos étnicos dominantes versus subjugados;
2- ser de classe social dominante versus subjugada;
3- ter orientações ideológicas, sexuais ou de gênero que sejam a norma vs. as que sejam condenadas, ser homem versus não homem, ser mono-heterossexual versus não-hetero, ser cis versus não-cis etc.;
4- ser considerade capaz versus deficiente por uma sociedade capacitista;
5- ter uma forma de agrupamento familiar padrão versus uma forma atípica ou instável;
6- ter uma religião patriarcal dominante versus ser de religião subjugada, identidade espiritual apagada ou irreligiose (melhores pessoas);
7- estar capturado por aparelhos ideológicos do poder versus ser dissidente;
entre muitos outros.
Assim, o ódio é dado no privilégio. A pessoa privilegiada exerce o ódio sempre, sobretudo na forma de privilégio a ser defendido contra a pressão que questiona e busca solapar o privilégio por parte dos setores desprivilegiados em sua mera existência. Ser fora do normativo é um ato de resistência que pode ser questionado em si, pois a existência do diferente ameeaça o "normal". Pode se neutralizar o privilégio e fingir que não há ódio nenhum, o que as religiões patriarcais dominantes basicamente existem para fazer, amansando as tensões sociais e garantindo a dominação e a chacina continuada de corpos e identidades (é sua função primordial). O mesmo vale para aparelhos ideológicos do estado: esporte competitivo de massas, escola, forças armadas, judiciário, etc. São aparelhos do ódio e manifestam ódio. Sendo desprivilegiade, você pode ser agredide, ofendide, desprezade, estuprade, violentade mais explorade no mercado ou assassinade para que se afirme e o privilégio.
Na pessoa desprivilegiada em algum ponto (ou em muitos), o ódio é a opção de questionar e buscar modificar o sistema no qual a assimetria lhe tolhe a liberdade existencial, ameaçando a existência física e possibilidade de manifestação livre. Não existe resistência amorosa contra quem te mataria se pudesse e casualmente despreza suas características mesmo sem perceber (muitas vezes de propósito também). É claro que os aparelhos de captura do estado podem amansar tais pessoas, fazendo-as ansiar o privilégio e buscar ativamente lutar contra seu próprio interesse como setor subjugado, envolvendo a pessoa numa espécie de exército de traidores profissionais.
Em alguma medida, todes somos traidores profissionais no sentido de que alguma ideologia dominante está em ação em nossa mente a todo momento, sendo que os instrumentos de dominação socioculturais são muito fortes (afinal, pertencem ao poder dominante) e sutis (penetram a esfera de ideias comuns sobre assuntos banais, se manifestam no detalhe).
Na imagem, um homem com barba comprida, camiseta vermelha com a legenda "URSAL" e óculos apontando para si mesmo com uma expressão nervosa e fala à uma mulher de óculos e cabelos curtos: "Como assim machista? Eu sou de esquerda." A mulher observa-o de braços cruzados e com um olhar de reprovação. Muitas vezes, setores de esquerda negam a importância das formas de dominação fora das classes sociais e pessoas que reproduzem esses discursos se consideram imunes às pressões da ideologia dominante.
O ódio revolucionário é o combustível que permitirá a destruição do quiriarcado (sistema de dominação), seja capitalista, cristão (na maioria da América, África e Europa), muçulmano (no oriente médio e partes da Ásia e África), budista (em partes da Ásia), hindu (em outras partes da Ásia), heteronormativo, supremacista branco, mono-normativo e outras formas de poder.
O ódio revolucionário significa odiar as formas de constrição óbvias e sutis que delimitam o potencial da manifestação humana plural e que criam a dominação através de muitas ideologias que buscam justifica-la dizendo que não é dominação, mas sim um estado natural, ou ainda afirmando que a dominação é um estado natural, inevitável ou impossível de modificar. É fundamental termos um potente ódio contra toda forma de dominação na sua estrutura mais básica e nos opormos frontalmente a seus apriorísticos, construindo um conhecimento e uma prática mais inclusivos, fortalecendo nossa comunidade e nosso entorno através de uma solidariedade ativa com as pessoas. Urge a construção de uma rede de coletivos livres em constante auto-defesa mútua contra o sistema de opressão. É preciso organizar frentes de luta ativas para ataques anti-hegemônicos efetivos. A organização da luta social e política exige que toda forma de dominação seja enfrentada hoje diretamente, pois estruturalmente está ligada ao kiriarcado como um todo, seja qual for sua expressão (econômica, política, institucional, nas relações, em grupos e até nos círculos subversivos também, como contra mentalidades kiriárquicas no nosso meio e contra o leninismo, por exemplo).
Se você ama todo mundo, você não ama ninguém. Se você se ama, necessariamente odeia alguns vilões (são homens em sua maioria).


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