Sem título
um sopro que não teve anjo que soprasse
não há criatura, não há obra para além das mãos e mentes
apenas assim foi porque as coisas são e sem mais são
eu soube que antigamente alguma coisa invisível tinha o leme dos eventos, velhas lorotas; mas sonhou-se isso sem saber
sonhos ruins porque pareciam tão perfeitos mas furtaram de frutificar
como sementes seus olhinhos desabrocham tão oportunamente na primavera preto-e-branca
que já não acontece mais, que já morreu,
e isso não me foi anunciado, porque essas coisas só se descobre que não acontece mais na esperança de quem olha o céu e suspira e mexe as mãos inquieto, olha o papel branco e nada, olha pra cima e pra baixo e nada
não importa quantas vezes penteie os próprios cabelos, nada
não foi esquecido apenas sempre foi
foi por isso ou aquilo que é em si apenas, em si se encerra sem ligar nada da terra aos céus e sem ditar dos céus nada à terra
senão aos céus da atmosfera
já a ordem do além é só um modo de ser menos feliz e fingir que isso foi dito pelos doutos, pelos santos inverossímeis, pelos homens de longos vestidos engraçados que apenas caminhavam no vazio da mente humana impressionada, aqueles que fitavam febris pra cima quase no orgasmo pensando que era isso finalmente, que era a resposta
o discípulo desses que guardam o tesouro da felicidade para o nunca, suportando como besta a carga e aplaudindo a demolição de todos os gostos e gozos e terremotos da libido e festas e frutos e sucos e vinho
estão pensando que falam com a verdade mas estão falando com seu próprio desespero; é o telefone do veneno que lentifica o raciocínio e não permite enfrentar de verdade a verdade
ou então se impressionam demais que é bela a flor, que o pequeno cabrito saltita, que a montanha é alta, que é possível amar e ser amado...
e gentes perdidas não conseguem ganhar presentes do mundo sem tomar tudo muito ao pé da letra, agradacem a um doador suposto
assim como os pisoteados não conseguem valer-se de sua força para uma boa peleja, acostumados à posição fetal
talvez creiam que mereçam
eu que não canto os hinos com bandeirola alegre bendizendo a ninguém, pois nasci salvo por mim mesmo e naturalmente livre
não há devir; o que era para ser feito foi feito, a vida santa foi vivida
os que se tornam mendigos por um motivo de extinção não alcançaram bênção maior que viver este mundo como eu vivo
pequenos copos servem melhor à mesa, eu já sonhei numa tarde curta, numa vida média e comum mil sonhos mais felizes que a glória de comerciais televisivos e promessas de contemplativos
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