A liberdade religiosa e o livre-pensamento
No que consiste o livre-pensamento? Muita confusão aqui porque muitas pessoas pensam que este é apenas o pensamento desinibido de qualquer convenção, livre para cada um segundo seu contexto. E de algum modo isso poderia ser verdade se o pensamento da humanidade não estivessse localizado numa história de restrições, imposições, colonizações e diversas outras formas de coerção. Porém, se compreendermos o pensamento ao longo da história como um processo inserido em conflitos e desigualdades, é muito difícil usar uma definição tão essencialista e suspensa de historicidade e materialismo.
E o livre-pensamento é um filho do materialismo na sociologia e na filosofia, é uma categoria que compreende a coerção e as ideologias que têm amarrado o pensamento e que pretende criticá-las. Não seria necessário afirmar o livre-pensamento se houvese uma suposta comunidade harmoniosa em que o pensamento em si já é livre e na qual a individualidade está suspensa de determinações muitas vezes restritivas e quiriárquicas.
Assim, o livre-pensamento é algo bem específico e não um modo genérico de falar sobre algo essencial e sobre uma licenciosidade do discurso que seria positiva em si mesma.
Sem mais delongas, a uma definição:
O livre-pensamento é um projeto de fazer pensamento crítico, livre de dogma, autoridade, revelação religiosa e contra o preconceito. É fundado numa perseguição racional e científica da verdade. Historicamente abarca ateísmo, agnosticismo, irreligião e crítica social à quiriarquia.
Aqui, percebemos que o livre-pensamento está filiado ao racionalismo e ao materialismo filosófico e tem relações estreitas com o método científico no estabelecimento de modelos que descrevem a verdade provisoriamente, ou seja, de acordo com um diálogo de pessoas que constroem teorias e as colocam a teste e à crítica para aperfeiçoamento do conhecimento. Nesse sentido, verdade aqui não é uma verdade no sentido essencialista, como uma verdade imutável e eterna que persegue-se na religião e na filosofia idealista, mas uma aproximação da verdade no contexto em que se produz o conhecimento.
O livre-pensamento exige sabermos que não estamos pensando de um lugar neutro ou desfeito de determinações socioculturais, por isso não pode abrir mão da crítica (no sentido que esta tem na filosofia crítica). Do contrário, converter-se-ia numa religião racionalista. E muitas pessoas que aderem à dogmas esotéricos ou a discursos motivacionais abstratos poderiam dizer que existe uma fé dentro da ciência e que existe uma crença na razão, porém isso é um erro grosseiro: a adesão da razão como método e da criticidade como critério produz o contrário de crenças: regojiza-se nas dúvidas e incessantes questionamentos que podem fazer avançar nossas condições de produção intelectual.
Assim, o livre-pensamento se circunscreverá na crítica da fé e da crença como discursos igualmente aceitáveis em relação à ciência, pois estas formas obsoletas de conhecimento, embora pré-científicas em muitos momentos no sentido de que colaboraram para a construção do conhecimento em tempos muito antigos, ainda sim abrem mão de continuar o debate em algum momento ao fornecer categorias impossíveis de serem debatidas e questionadas. E a isto chamamos dogma, a substância da fé (no sentido religioso/esotérico). Apela-se para argumentos da experiência como autoridade, o que é uma ilusão cognitiva bastante comum, mas incompatível com a razão.
Se nas ciências e na filosofia materialista abrimos mão de argumento de autoridade a partir de experiências individuais (a pessoa pensar que falou com alguma dinvidade, experimentou um estado espiritual, ouviu vozes, saiu do corpo etc.) é justamente porque existem ilusões cognitivas naturais que podem nos enganar. Temos embutidos em nossa constituição psíquica e biológica alguns erros de percepção que só puderam ser contornados através de uma dose generosa de ceticismo e busca por explicações mais sistemáticas, o que possibilitou avanços técnicos e modos de lidar com o conhecimento mais precisos. Toda revolução técnica e metodológica acompanhará, em condições de abertura ao diálogo, modos de organização social mais racionais e mais corretas de uma perspectiva humanista, como a república em relação à monarquia e como o socialismo em relação ao capitalismo.
Não tem como afirmar que isso demanda fé ou crença, pois se funda na afirmação da própria perfectibilidade de si mesmo: não afirma categoricamente, mas coloca no papel os modelos mais coerentes e mais resistentes à contradição que foram apresentados. Estes jamais são definitivos ou incontornáveis. Há o estímulo para que sejam constantemente superados. Isso jamais poderia ocorrer na religião ou teoria esotérica. Isso jamais poderia ocorrer em filosofia idealista. As próprias bases da afirmação de uma verdade externa ou de um ponto de vista neutro e suspenso do processo social e histórico da produção do conhecimento negam a objetividade necessária, colocam apriorísticos antes de estabelecer os dados e busca distorcer a informação que temos para comprovar esses apriorísticos.
Por exemplo, suponha que considero que o mundo tenha sido criado por uma divindade; o criacionismo. Desse modo, se eu decidir fingir que sou cientista e desejar criar teorias criacionistas de caráter "científico", eu trabalharei primeiro com o pressuposto de que o criacionismo é verdadeiro (isto é, que o mundo de fato é o produto de uma inteligência superior). Essa afirmação é assumida como uma realidade a ser aceita antes da investigação das informações relevantes — um apriorístico. Assim, ume "cientista" criacionista, como Michael Behe, distorcerá as informações relevantes existentes para confirmar a hipótese que já tem por certa, de que existe uma inteligência que criou o mundo, a vida, o universo etc.
Ora, alguém poderia objetar que tode cientista lança uma hipótese à que tenta conformar os dados obtidos em sua pesquisa, sendo assim Michal Behe um cientista tanto quando Marie Curie, a famosa física que estudou a radioatividade de modo pioneiro no início do século pregresso. O que falha nesse argumento é o desconhecimento dos procedimentos científicos: a pessoa que produz ciência não inicia com uma hipótese, mas com a observação da informação disponível, das diversas teorias já existentes e de um problema específico a ser considerado. A partir daí, a cientista começa a analisar detalhadamente os dados e formula uma hipótese onde há a necessidade de criar modelos explicativos que preencham lacunas ou atualizem concepções que supõe necessitarem de atualização ou total superação. A hipótese é, então, testada pela própria cientista exaustivamente e depois apresentada para a comunidade científica, que a testa de formas que a(s) autora(s) da teoria provavelmente não imaginaram. Esse controle de qualidade é a abertura à falsificação que pode fazer avançar observações e reformulações que aperfeiçoarão a teoria proposta. Depois de receber esse feedback de seus pares, a cientista irá confirmar seu modelo, abandoná-lo, aperfeiçoá-lo etc.
Michael Behe, de modo totalmente diferente de ume cientista, não analisou informações ou modelos relevantes para lidar com algum problema que esteja presente na biologia (que foi onde mais se debruçou este "pensador", tendo estudado bioquímica). Ele simplesmente tomou um apriorístico retirado de um domínio estranho à biologia, a hipótese criacionista, e distorceu informações sobre o estudo evolutivo para criar categorias que "compravariam" o modelo criacionista, como o argumento de uma "complexidade irredutível" de alguns sistemas biológicos que justificaria necessariamente terem sido projetados por uma inteligência.
Acontece que esse argumento é estranho à área em si porque traz categorias que não dialogam com o que tem se desenvolvido. Tirados do chapéu. Além disso, contra a metodologia científica, não tem qualquer alcance explicativo que lance luz sobre algum problema ou lacuna existente em nosso melhor conhecimento; pelo contrário, contém apenas problemas adicionais cuja proposição não recebe suporte com base em nenhuma informação além do "pensamento" de Behe. O próprio Darwin já tratou dessa questão em seus escritos de modo satisfatório e a questão foi "resgatada" por Behe de modo desonesto e arbitrário, algo que é unânime fora do círculo de "cientistas" criacionistas.
É assim que opera o pensamento esotérico e religioso: a partir da mitologia, traz pressupostos estranhos à filosofia e busca distorcer a informação disponível para comprovar seus apriorísticos. Do mesmo modo, a filosofia idealista e ideologia liberal trazem reforços à quiriarquia de modo a deformar a compreensão de mundo das pessoas. O projeto, no fundo, é de poder e de manutenção de uma ordem social onde o dogma substitui o livre-pensamento.
Por isso, para as libertárias o livre-pensamento está na raiz de sua sociologia. O libertarianismo surgiu dentro do coração de questionamentos à quiriarquia no século 19 e se fortaleceu por análises céticas, materialistas, psicologicamente realistas e com o elogio da ciência (e uma crítica a seu uso contra a liberdade humana). A existência das formas de libertarianismo cristão ou outras vertentes do tipo (budismo anarquista, espiritualidade anarquista num sentido esotérico etc.) são problemáticas em si, contraditórias com algo fundante do pensamento libertário.
Não sou radicalmente contrário à existência de formas reformistas de religião e esoterismo "nova era", desde que critiquem a leitura literal das literaturas dogmáticas de seus cultos (e de outros) e as ações da religião na história e busque redimir seu nome. Para mim, é um esforço sem sentido, dado que o pensamento esotérico e religioso está em obsolecência, tem seu fundamento em enganos cognitivos. Porém, a mudança de paradigma nunca é sem passos intermediários.
Uma imagem útil pode ser imaginar uma prisão velha onde se mantém pessoas escravizadas entre um e outro trabalho forçado para um mestre cruel e violento. A religião e o esoterismo são essa prisão que mantém a humanidade à serviço dos sistemas quiriárquicos. Agora, imagine que essa prisão está em chamas e as pessoas estão morrendo queimadas e sufocadas: a crise de um modelo obsoleto e auto-destrutivo, como a que estamos vivendo, onde o fundamentalismo e ódio à ciência saltitam até no mais hippie dos grupos "espirituais". As formas reformistas e a leitura crítica da religião, suas formas mais seculares etc. são uma janela que subitamente cede e permite às pessoas escravizadas escaparem do edifício. Após vê-lo desabar atrás de si, as pessoas escravizadas podem apenas sair e construir seu modo de vida à parte de seu antigo senhor, que ainda as buscará contratar para trabalho assalariado (ideologias liberais), porém algumas pessoas podem até mesmo se ressentir da perda de sua prisão familiar. Elas vão construir gaiolas de madeira onde preferem dormir ao invés de um quarto. Durante à noite, serão ouvidas falando com seus afetos mortos. Essas pessoas estão com um delírio causado por seu luto.
A perda de crenças enraizadas na nossa cultura é muito dolorosa para algumas pessoas especialmente sentimentais e apaixonadas por narrativas misteriosas e obscurantistas. Elas criam sistemas seculares (cristianismo secular, budismo secular, coach quântico) ou aderem a modelos ontológicos liberais (pró-capitalistas). E isso é uma transição. É ruim e vai ser criticado frontalmente pelas libertárias, porém temos que lidar com a existência desses passos. Uma pessoa que consumia drogas cotidianamente não poderá facilmente "desmamar" da noite para o dia, tendo recaídas, trocando a compulsão de drogas por outras compulsões e sofrendo momentos de sofrimento mental intenso conforme reconstrói as perspectivas de sua vida.
O projeto do livre-pensamento é que destruamos a prisão e construamos uma cidade com princípios de respeito mútuo, humanismo e razão. O ideal libertário fornece ferramentas de demolição e construção para esse projeto. No que tange o livre-pensamento, a liberdade religiosa é uma transição para a superação de toda ilusão religiosa no futuro.
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