A inconsistência da reencarnação

A pergunta: Se existe reencarnação, como a população da Terra mais que dobrou?

R: Aquelus que acreditam em renascimento ou reencarnação têm muitas abordagens diferentes. Budistas negam a possibilidade de conhecer o início do samsara ("a perambulação"). Não aceitam que é uma alma que encarna, mas sim carma ("ação") de um ser que partiu e ficou sem resolução. O darma ("a lei") determina que uma nova manifestação nasça para lidar com o carma não resolvido. A manifestação não precisa ser humana ou estar na Terra. Pode ser em outros mundos, pode ser em outras dimensões. 

Agora, muitas doutrinas hindus pregam que existe um atman ("eu"), que é como uma alma e viaja ao redor do universo, tendo nascido em muitos reinos, formas e planetas. Portanto, o número de seres seria infinito. O carma seria uma das leis de um deus e significa "ação que envolve o ser nas tramas no samsara", enquanto outra lei seria o darma, que basicamente significa "seguir a missão de cada vida, cumprir seu dever e assim se desvencilhar mais e mais do samsara". Em ambos os sistemas religiosos (ou em muitos deles, já que o hinduísmo não é um único sistema), viver é um sofrimento. A continuação é dolorosa e inconveniente. Ambos os sistemas falam da liberação de tal ciclo como algo bom. Assim, essas são crenças ascéticas nas quais a vida é algo a ser suportado sem apego a valores e prazeres mundanos. Apenas versões diluídas para um público ocidental parecerão menos ascéticas. E são mais e mais valiosas num mercado espiritual em crescimento ($$$).

O espiritismo é uma doutrina francesa (da qual ninguém gosta na França) que mistura crenças hindus e cristãs com um polimento de pseudo-ciência para apoiá-la. Ela se baseia em "provas" de comunicação espiritual (que nunca se provaram em nenhum sentido real). O fundador confiou nessa "comunicação" para falar sobre reencarnação como um processo onde nos aproximamos mais da perfeição moral e intelectual, alcançando cada vez mais a proximidade de um certo deus. O processo foi chamado de "evolução" espiritual. Aqui, a evolução é mal interpretada como melhor, superior ou mais harmônico, um erro que vimos tantas vezes durante o século XIX (quando viveu o fundador da doutrina). O espiritismo está repleto de coisas "mais evoluídas" ou superiores, como espíritos, sociedades, raças, culturas e doutrinas. Sua ideia é basicamente semelhante a um vudun cristão e hindu, com a diferença de que, ao superar a animalidade em um ciclo de nascimentos em formas animais complexas, o espírito não volta como animal.

Numa olhada séria constatamos que todas essas crenças são terrivelmente anti-vida, sem sentido e absurdas, mas não por causa do argumento básico da população da Terra. Vimos como as doutrinas lidam com este assunto: existem inúmeros planetas e poderíamos ser animais, fantasmas, demônios, deuses ou o que seja.

O problema é que esses sistemas de crenças tentam fornecer um senso de justiça ao universo, uma vez que a ação será resolvida. Não é preciso se preocupar em promover a moralidade e a justiça nas sociedades, uma vez que o universo se equilibra por si mesmo. São doutrinas do aquietamento social. Parece-me que pessoas poderosas adotaram essas religiões para seus estados por sua conveniência: são justificadas em sua opulência por merecê-la por outras vidas e nunca confrontados por massas revoltas, já que, se forem más lideranças, na próxima vida será feita a justiça. Toda crença em punições ou ganhos de outra vida resulta nessa espécie de justificação da miséria, corrupção, exploração e total impunidade das classes poderosas e de privilégios sociais.

A psicologia de tais doutrinas é falha por causa dessa ideia de uma superioridade do ascetismo e do pacifismo. Nada disso é bem ajustado à psique humana em seu estado natural; vai-se à contramão da vida mental saudável. O desejo é tratado de uma forma terrível e repressiva, desprezado e tornado tabu com argumentos do além sem sentido algum. A vida humana em sua complexidade é negada e simplificada demais. É algo negativo em si mesmo considerar a vida, os sentimentos e as aspirações humanas coisas de pequena valor, "mundanas", exaltando outros mundos ou dimensões superiores que se alcançaria na negação das potências da vida humana plena.

Nunca houve qualquer prova de reencarnação (ou renascimento budista). Não entramos em contato com mentes inteligentes desencarnadas ou entidades mágicas. Aparentemente, nossas mentes são fenômenos muito corporificados; nunca saem voando por aí. O estudo com experiências de quase morte e projeção astral falharam em detectar qualquer coisa além da reatividade do cérebro à sugestão; um sujeito de teste nunca forneceu um número aleatório gerado em um painel eletrônico colocado no topo de uma prateleira alta, por exemplo. Conhecimendos obtidos dessa forma jamais forneceram informações consistentemente incontestáveis, muito menos confirmadas coletivamente. Se limitam a informações vagas e intrapessoais. Todas as "evidências" são apenas anedóticas e geradas em contextos duvidosos.

Eu preciso dizer que não são todas as pessoas que vivenciaram tais experiências que são mal-intencionadas e falsas. Essas experiências não são menos reais se a explicação mágica não é real. A nossa mente é fascinante e produz estados muito diversos e interessantes de consciência. Isso é maravilhoso e muito mais vívido do que sistemas mágicos de crença em fantasmas e muitas vidas.

Além disso, é natural que, num tempo pregresso aos avanços científicos e tecnológicos, atribuíssemos tudo ao além, e que as ideologias dominantes usassem isso para a conformidade social (ainda hoje se produzem dezenas de novas ideologias de conformidade, indiferença, preguiça e justificação da competição e exploração, inclusive imitações de ciência). As crenças estabelecidas na cultura moldam absurdamente nossas percepções e tornam as sugestões mais tangíveis. Sugiro a quem lê em inglês o livro "Why we believe in gods". Ele fala sobre a atribuição de entidades espirituais e divindades à experiências como uma tendência genética do cérebro humano devido à nossa maneira de enxergar agência em fenômenos, uma característica no geral evolutivamente positiva para a primata nômade caçadora-coletora, mas que produz também certas ilusões cognitivas.

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