Sobre a agamia
A algum tempo fiz séries e séries de textos acerca da agamia. Os textos foram removidos e as postagens, apagadas.
Os debates que estavam surgindo eram sinceros da minha parte, mas em algum momento notei que a noção de agamia tem alguns problemas e resolvi abandonar a produção de textos sobre esse tema e refletir mais profundamente sobre discussões de não-monogamia antes de continuar a produzir qualquer conteúdo.
O referente mais importante de meus estudos tem sido o amor livre tal e qual no anarquismo social. Irei revisitar literaturas diversa e estudos sobre as muitas formas de não-monogamia e críticas feministas e pós-feministas dessa questão. Tentarei compreender as posições marxistas e retomar uma posição anarquista em resposta (pelo menos é o que penso que tentarei fazer, mas posso mudar de ideia conforme estudo a questão e chegar a uma posição que nem conheço).
É preciso explicar que com que ideias da agamia tive consonância e quais tive discordância.
1) O projeto tem uma crítica inteligente dos tipos de relações e classificação delas como gamia. A descrição do problema da gamia em si é excelente no blog "Contra el Amor" e no livro "Agamia: Dia Uno". A questão da poligamia que eu tanto trouxe foi uma leitura minha. Israel não usa essa palavra para se referir à relações não-monogâmicas que tenham características de análogas (ou semelhantes) à monogamia;
2) A compreensão do valor sócio-sexual num mercado sexual/afetivo que o autor descreve em seu livro é apresentada de modo didático interessante, e como são colocadas questões de fundo com base nessas ideologias (palavra minha) de cunho amoroso.. O impacto qu isso tem nas relações humanas é apresentado de forma interessante, assim como o problema da beleza (Uma vez, me falaram também dessa teoria do mercado sexual/afetivo e desejo me aprofundar nesse estudo independentemente);
3) A agamia tem uma estética discursiva agradável para pessoas que tem uma inclinação crítica à quiriarquia (embora nunca apareça essa palavra no texto);
Porém:
4) A crítica que se pode fazer do amor como se convencionou chamar "romântico" foi expandida no autor para qualquer noção de amor. Embora muitas noções de amor sejam nocivas, o autor simplifica a ideia de amor. Toda forma de pensar amor, para o autor, é uma forma de pensar a escravidão de mulheres por homens e de perpetuar e justificar a construção da gamia. O autor ignora e não faz menção à polissemia, ou seja, à pluralidade de sentidos com que se leu a palavra e com que se significou, inclusive em debates sobre relacionamentos sexual-afetivos, mas não limitados a estes. E por vezes, o autor usou a menção da palavra como um argumento contra um discurso ao invés de analizar seu conteúdo e sua construção como referente textual. Há uma estética do argumento que supera a razoabilidade;
5) A leitura que o autor faz de gênero é muito à moda do feminismo radical: determinada pelo sexo biológico. O autor faz referência às possibilidades da hetero- e homossexualidade como formas de relacionamento sexual possíveis. Ele chega a dizer que a variedade de debates sobre gênero, sexualidade e orientação romântica é um elemento "tão plural que desafia a seriedade", e com isso se fecha para debates que são relevantes sobre o gênero e o questionamento da ideologia binária, a transfobia e outros elementos. Isso até mesmo fica em falta na sua análise do valor sócio-sexual;
6) A abordagem de sexo do autor nega e enfrenta frontalmente o sexo-positivo (isto é, a ideia que naturaliza e incentiva relações eróticas, tomando-as por saudáveis). Embora eu não seja um grande fã de tudo que leva esse rótulo de sexo-positivo, eu considero que medidas fortes de moralismo e noções antissexuais se apresentam no texto do autor. Prevendo respostas que apontem seu moralismo, o autor quase até mesmo o assume, acusando qualquer pessoa que venha a defender uma noção de sexo-positividade como um tipo de fã da dominação, submissão e humilhação através do sexo e da sexualidade. Daí sua crítica enverga para o BSDM, talvez como exemplo extremo. Não concordo em nada com essa análise. O sexo pode ser um lugar de submissão e nossa sociedade tem modos muito ruins de representá-lo, mas a solução não pode ser uma negação das revoluções sexuais. Sua crítica excede a medida do razoável. O autor parece não compreender como esses processos podem ser contraditórios e que não se pode resolver tudo à moda puritana;
7) O autor tem uma noção de sexo ideal como aquele que "não tem objeto". Não é possível qualquer atividade psicológica "sem objeto". Falta alguma referência nesse sentido no texto, mas basicamente, em resposta, basta dizer que em todas as linhas da psicologia, a noção de um objeto é vital para qualquer forma de atividade psíquica, inclusive solitária. A própria pessoa é objeto de diversos processos psicológicos de si mesma. Por exemplo, a masturbação ou a não-masturbação é uma atividade (ou inatividade) sexual que objeta, na psique, a partes de si mesma e sua relação com o ato físico representado, o desejo e outras coisas. Pensamentos têm conteúdo sexual com objeto sempre (do contrário não existiriam). Se essa ideia tivesse sido escrita na forma de sexo "sem objetificação", poderia ficar bem melhor. E poderia desenvolver uma crítica bem interessante da objetificação da outra pessoa, porém isso tenderia ao moralismo no contexto de outras críticas do livro;
8) Obviamente, o autor passa longe de mencionar a questão da assexualidade (ausência do desejo por envolvimento erótico). Como isso é uma retomada do item 5, manterei apenas essa frase;
9) A práxis da revolução agamista proposta por Israel acaba sendo artificial e não parece ter relação, ou ter pouca relação com, sua teoria. Ele propõe que homens evitem passar cantadas e que mulheres possam fazê-lo, por exemplo. Ou que as pessoas passem a se relacionar de modo que o erotismo seja apenas uma satisfação a ser atendida na outra pessoa conforme sua necessidade e para além do desejo que possa haver entre as partes, descartando todo o elemento do interesse, como um serviço erótico gratuito e universal. Essas soluções me parecem estranhas e fora de lugar como propostas até mesmo no feminismo, que o autor reivindica.
Enfim, essa é uma leitura crítica do livro. Quando eu escrevi algo sobre agamia, busquei dissociar dos escritos de Israel, mas penso que a palavra agamia está atrelada indissociavelmente ao que ele vem produzido nos últimos anos. Agora, o termo "agamia" em si é genial e eu penso que a crítica ao que chamamos de monogamia não é apenas a crítica da mononorma, mas de uma gamonorma também, ou seja, de uma norma das relações como hierarquicamente acima do que seria "somente amizade". Eu partilho desse único elemento autêntico das análises e escritos de Israel, e por isso não chamarei mais o que posso vir a escrever de agamia.
(É interessante dizer que a palavra "agamista" existe na história pregressa do português e significa "ser contra o matrimônio" e "recusar casar-se no civil ou religioso").
Só não tenho nenhuma ideia exata do que eu irei escrever sobre relacionamentos amorosos, mas sinto que permaneço interessado em não-monogamia, feminismo, estudo de gênero, amor livre, anarquia relacional e nessa ideia de que alguns relacionamentos interpessoais não devem ser aqueles que definem centralmente nosso convívio ou valor em face de interações sociais, a ponto de tornar outros relacionamentos secundários, terciários ou até mesmo insignificantes, sejam ou não amorosos.
Ultimamente, estou lendo essa coletânea de textos de autoria de anarquistas sobre as questões amorosas e a monogamia. Eu recomendo a todes que sejam interessades nessa questão:
El Amor Libre: Eros y Anarquía.- Osvaldo Bairroguia (org.)
Foto de capa do livro referido.
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