Como é a vida sem religião
Eu já não tenho paciência para meias palavras. Prefiro o jogo limpo: são bobagens ideias religiosas que ontem eu defendia. Não me envergonho de ter modificado minhas opiniões muitas vezes a longo da vida. Tudo isso está indo numa direção de mais clareza e bom-senso, uma depuração.
Por exemplo, antes de ser budista, eu acreditava num universalismo "salada mística". Cabala, espiritismo, hinduísmo, Osho: pode mandar. Tudo é válido. Só que isso tem uma consistência de diarreia, porque cada um fala uma coisa e nada faz sentido. Eu sentia que estava, no fundo, falando um monte de bobagens bonitinhas e superficiais. O universalismo é superficial.
O budismo é coerente internamente como um sistema fechado em si mesmo, algo que tem uma direção mais ou menos definida, apesar das centenas de seitas budistas acrescentarem a confusão sectária.
Às vezes, pensando em ter acreditado em coisas como carma e autorregulação cósmica da justiça moral, fico decepcionado comigo mesmo e penso como pude ser tão inocente. Uma coisa tão flagrantemente falsa e conveniente para algum tirano, afinal! Porém, logo me sinto bem: eu fiz isso de boa fé, tentando entender profundamente, compreendendo cada argumento a favor e contra, debatendo sem reserva. Melhor que muitos "budistas" que ficam numa superfície da auto-ajuda / ideias vagas a vida inteira! E eu tentei lidar com as contradições perguntando honestamente para professores budistas de escolas tradicionais, dialogando com eles e nunca ignorei dúvidas sinceras que eu tivesse. É verdade que em alguns momentos eu me esforcei para aceitar algumas coisas, o que não funcionou, mas isso também partiu de um desejo honesto de entender profundamente.
E tenho orgulho de dizer que nem no momentos de maior fé, jamais acreditei em bobagens do tipo a pessoa iluminada entrar numa meditação e virar diamantes ou um arco-íris!
No fundo, jamais acreditei totalmente em carma e naquela "psicologia budista", aquela compreensão rudimentar da mente com base em desejo, aversão e confusão... Eu já tinha algum bom-senso. Lia aquilo tentando adaptar à melhor compreensão que temos hoje. É decepcionante ver professores budistas usando aquelas ideias simplistas da antiguidade como se fossem verdades universais e atemporais.
Existem religiões menos ruins que outras, na minha opinião. Eu jamais poderia ter sido cristão, mas budista sim. Lembro que celebrava cada pequeno bom-senso do budismo, do tipo não ter a ideia fracassada de um deus criador ou o gênero não importar. Para minha decepção, tudo que eu achava superior no budismo estava sempre ameaçado pela comunidade budista, que reforçava preconceitos da sociedade circundante e sempre colocava de lado as coisas boas do ensinamento, se tornando reacionária, tóxica, "imparcial" diante de graves injustiça e encobertando os erros de mestres que cometiam abusos sexuais, que ensinavam doutrinas completamente aberrantes com as escrituras e muitos outros problemas.
Uma vez, o monge nos disse que buscar conhecimentos era um obstáculo para o despertar! Clássico caso onde o religioso abertamente afirma todo o obscurantismo da fé, sem os disfarces do fides et ratio.
Da decepção com o budismo moderno, a descrença foi expandindo: o próprio Buda tem um monte de ensinamentos bizarros sobre muitas dimensões, renascimento e morte cíclicos, sexo como algo inerentemente ruim, poderes paranormais, dualismo e outras coisas que sabemos ser simplesmente falsas, compreensões grotescas de um tempo muito antigo. A pessoa oniciente deveria saber um pouco mais sobre a realidade, mas lá está O Desperto falando bobagens da idade do bronze. O Sanga (comunidade sacerdotal) desde sempre vive propagando coisas bem tóxicas: crença no valor de outra vida, na superação da condição humana natural como algo ruim (gerando repressões malucas), numa visão bem simplista e anti-natural da mente, crenças num vazio e em entidades mágicas, rituais, orações e outras tolices que, a bem da verdade, nem o Buda se submeteu a defender.
Como vocês podem notar, noções fortes de política e de ciência que me mantiveram realista sempre e me salvaram de me tornar um reacionário disfarçado de pessoa imparcial. Uma atitude irracionalmente conservadora é muito comum nos meios esotéricos. O bom-senso "do mundo" me salvou.
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Me perguntaram:
Se você não viver pelos três refúgios (Buda, Darma e Sanga), o que vai praticar então?
A pergunta poderia ser feita por qualquer religião:
Sem fé, como viver? Sem deus, sem os espíritos de luz, sem a consciência superior, sem a descoberta do eu verdadeiro etc., que orientação serve? Como viver sem a religião (no sentido amplo da palavra)?
Essa resposta é maior que a pergunta em muitos níveis. A religião e o esoterismo nos propõem coisas no campo moral, nas atitudes filosóficas com a vida e com a própria mente e no campo político. A resposta deve entrar em cada um desses.
Moralidade
Dawkins diz corretamente em seu "Deus: um Delírio" que a religião recebe muito mais respeito do que deveria, sendo quase um intocável em muitos contextos. Convicções religiosas são usadas para justificar todo tipo de tratamento especial para seu aderentes, mas a ausência de religião é desprezada como prerrogativa nos mesmos contextos. O autor explica em detalhes no livro mencionado, que recomendo fortemente.
Isso é uma questão política em si. O esforço por uma sociedade laica exige a construção de uma oposição aos privilégios da religião, seja o uso explícito do estado para promover a religião e mantê-la, seja os benefícios que uma religião tem em relação a outras ou à ausência de religião. E isso inclui a demolição dos mitos de que ela é necessária para uma vida feliz, ou mesmo o elogio falso de que ela é tão valiosa como a irreligião.
Uma vez, dizem que o Buda teria dito para não crermos em nada que não está de acordo com nossa própria razão. Não é bem isso que ele disse, claro. Se for verdadeiro o discurso, Sidarta teria dito para não acreditar no que foi ensinado por algum mestre por ser nossso mestre e "não se deixar levar pela razão, inferência ou analogia".
Eu gostaria de mandar o Buda ir catar coquinho, claro. Inferência lógica, indução, analogias e métodos racionais são tudo que deveria contar, além de uma dose de bom-senso situacional. Suas ideias morais nesse mesmo discurso são super problemáticas, aplaudindo uma espécie de tendência a se tornar inofensivo e politicalmente neutro.
Parabéns pelo excelente texto. Muito reflexivo e com várias críticas repletas de conhecimento e experiência própria.
ResponderExcluir"Então vamos celebrar uma moral objetiva sem base em doutrinas religiosas para viver melhor".