Fragmentos Irreligiosos V
O darma dos budas de todos os tempos é um ensinamento que vê tudo que temos como verdade como meras ilusões e criações da nossa confusão existencial. Essa própria doutrina nasce da confusão existencial de quem a escreveu (um corpo de monges celibatários num período próximo ao começo da era cristã).
Nada poderia ser mais fantasioso que esse tipo de visão que confunde delírios sugestionados de ascetas famintos e com privação de sono com algum tipo de revelação. Talvez fosse conveniente num tempo de miséria, exploração e guerras brutais negar a existência do mundo e da realidade do próprio eu. A partir dessas doutrinas que desprezam a vida natural, se construiu um monumento à míngua da humanidade, à demolição de seu potencial como espécie e um amor à aniquilação da própria existência.
Ora, Nibbana significa "aniquilação", o mesmo que ir além dessa existência. É, essencialmente, um culto do além-vida como uma promessa de cessação de nossos infortúnios. Daí que os sistemas de meditação dos sacerdotes capados do Maldito-pelo-mundo Gautama tentam nos enculcar que tudo é sofrimento, que não vale a pena a existência e que a felicidade é impermanente. Parece patente que um grupo de pessoas armaguradas que insistem em negar o prazer a todo custo vá achar a vida uma coisa horrível, mesmo.
Não à toa, os discursos mais antigos do Dormente classificam o amor em bem-querer, compaixão, apreciação e equanimidade, numa ordem de crescente importância a seu caminho. Todas as formas de se importar e desejar o bem deveriam funcionar como meras intenções que magicamente seriam o suficiente. Num tal discurso, Gautama teria nos orientado à ideia absurda de que um sentimento amoroso desses tipos que fosse nutrido por um segundo valeria mais do que séculos de ações em prol dos seres.
Isso revela bastante sobre a ilusão na qual sua doutrina mergulha os seres, baseada em intenções boas a partir de uma distância. A equanimidade como suprema forma de amor é a aceitação de que "todos têm o que merecem", ou seja, a crença na ação e fruto (Kamma-Vipaka). Uma ideia mágica de que o mundo se autorregula através do funcionamento compensatório de uma lei moral que promove a recompensa punição pelas ações. Se existe alguma doutrina mais conveniente para o pacificamento de massas e para criar a satisfação em populações oprimidas por opulentos governos, não sei qual seria! A polícia do pensamento entra em cena.
As ideias insanas de um ciclo de nascimento e morte são fundamentais para existir uma senda do darma budista. É bem verdade que a ocidentalização e as versões aguadas para audiências modernas ensinam o darma como uma metáfora útil (um ensinamento expediente), da mesma forma que o céu ou o inferno são vistos como metafóricos em versões reformadas do cristianismo.
Acontece que essas doutrinas ficam meio sem pé nem cabeça em si mesma: falta o sentido em continuar olhando para seus rituais e artes como algo nobre, a lógica interna começa a faltar. Se é tudo mero simbolismo, temos símbolos melhores nas compreensões mais atuais do mundo, na ciência e em filosofias e religiões menos ascéticas.
O destino final de cada mitologia é na estante de mitologia das bibliotecas: toda religião e doutrina espiritual acaba virando a poesia de civilizações mortas. É minha esperança que o darma budista e o cristianismo se apressem a morrer. Sem recorrer à ignorância cultivada do fundamentalismo, seus próprios seguidores não conseguem mais justificar as fantasias de seus livros sagrados. Diante de um conhecimento mais avançado da psique, da física, do cérebro, da sociologia, da história e com o avanço da filosofia crítica, a falsidade dessas doutrinas ascéticas e sua instrumentalidade para o poder político na história ficam mais e mais impossíveis de negar.
Talvez os únicos seres que tenham a agonia crescente como destino certo no mundo real sejam o religioso fundamentalista, o conservador tradicionalista e a pessoa que é obrigada a conviver com as loucas doutrinas de uma justiça do universo, seja com base em darma ou divindades tirânicas à moda judaico-cristã.
A psicologia budista se provou um conjunto de moralismos bizarros, fadados a reformas atrás de reformas que o tornam uma massa incoerente, uma colcha de retalhos sem qualquer validade que não o interesse antropológico. De doutrinas completamente negativas com a vida e o sexo, voltadas para a condenação do prazer e das emoções naturais e baseadas na repressão, o budismo passou por uma era clássica de patriarcalismo, homofobia, crença na intervenção divina, doutrinas abstrusas de um absoluto metafísico e, por fim, chegou a uma era hippie de professores com voz calminha sussurrando mensagens motivacionais. De monges celibatários e renunciantes, o sacerdócio passou a sócio de governos totalitários e, por fim, leigos carecas entusiastas de mitologia que lucram com os resíduos finais de sua moribunda doutrina.
Eu celebro a morte do darma. Por mil vezes tendo renunciado todas as ideias do sagrado, eu sou o parteiro da nova era em que iremos desprezar qualquer ideia de justiça do além. Vamos viver essa vida com a finalidade de encarar no olho a realidade, sem mais mistificações inúteis. Não existe santidade, despertar ou um ponto de vista suspenso da condição humana, a partir do qual magicamente se eleva para além de nossas limitações. Em contrapartida, agora nosso potencial está em nossas mãos. A justiça se torna possível quando temos o entendimento de que depende de nossa ação na sociedade: temos que fazer valer nosso poder individual e não mais aceitar a tirania de classes sociais que exploram a humanidade. E a religião ascética é um obstáculo para essa jornada rumo ao justiçamento dos carrascos.
Eu, Adhammo Nirayaka, anuncio a morte dos darmas, o fim das farsas do Nazareno, o fim da submissão a deuses e a denúncia de toda a falsidade desses delírios sem sentido ao longo da história. Mentirosos e envenenadores são esses que falam no além, no puro, no santo e no transcendente.
Nunca houve nem haverá uma extinção sublime da condição humana. A vida, essa única vida é uma maravilha e uma jornada valiosa. Seu sentido imediato é embeber a poesia da natureza, do maravilhamento das artes e da cultura, nos prazeres e desprazeres, na construção de seu próprio potencial humano...
É verdade que existem infelicidades, afinal. Que surpresa! Não é triste o sonho infantil de imaginação do além-vida não exista. Olhar essa vida no olho produz uma rica apreciação das suas condições se tivemos sorte. Se não nascemos em ditaduras brutais ou em países esmagados pelo fundamentalismo, a vida é boa o suficiente. Se não vivemos com condições terríveis de saúde ou em sociedades decadentes, se não formos miseráveis e famintos, a vida é potencialmente maravilhosa.
O universo em si não é indiferente ao nosso sofrimento humano e ao sofrimento de animais diversos na medida em que não formos nós mesmos indiferentes. Estamos, afinal, no universo. Somos natureza. É verdade que o universo fora da humanidade não tem que obececer nosso conceito de justiça e nossa tentativa de dobrá-lo a nossos símbolos. É verdade que a natureza humana não é uma fantasia de santidade. São patéticos os argumentos de tentar justificar essas doutrinas de justiça cósmica pela satisfação que produzem a nosso intelecto.
Eu, particularmente, acho essas imaginações ridículas. A vida de verdade é muito mais interessante. A nossa mente ao natural é muito mais interessante que as bobagens moralistas da idade do bronze.
Enfim, a justiça que existe é aquela que nós construímos com nossas mãos. A população em revolta organizada pode acabar com a iniquidade dessa escravidão histórica da humanidade. Vamos enforcar "o último rei nas tripas do último padre" (e o último monarca ser-de-luz nas tripas no último monge). Toda ideologia que manteve a humanidade pacificamente indiferente e doutrinada em sistemas de exploração será destruída.
Ironicamente, será a melhor época da humanidade, ao contrário da escatologia que compuseram nesses mitos. Será como o fim de uma pré-história, na qual ideia escorregadias nublaram nosso potencial por milênios de poesia alucinada, de culto à morte e ao nada.
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