O amor livre e os relacionamentos

Chega a hora de eu me pronunciar de modo mais amadurecido sobre o amor livre segundo a uma compreensão que desenvolvi de estudos de não-monogamia com influências dos debates ao longo da história da não-monogamia: o amor livre anarquista, o poliamor, a não-monogamia política, a anarquia relacional e a agamia, tudo lido com as lentes do anarquismo social - não do marxismo. Eu chamarei essa proposta de "amor livre" sempre, entendido como o amor livre do século 21, ou o meu amor livre.

"Estar num relacionamento". Essa frase evoca, como qualquer outra, alguns significados mais usuais, o que indica uma hierarquia simbólica - uma forma de determinar quais representações são mais poderosas e centrais na nossa cultura.
Se eu lhe disser que "estou num relacionamento", logo se supõe que seja um relacionamento "amoroso" (na falta de um nome melhor). Isso é um sinal claro de que esssa forma de relação é mais importante nas sociedades gamocêntricas que vivemos.
O que significa para uma sociedade ser gamocêntrica? Significa que prioriza acima de outros relacionamentos o relacionamento gâmico, isto é, os namoros, casamentos, relacionamentos entendidos como "amorosos" ou "românticos" etc.
Infelizmente, a ideologia do gamos (união amorosa "superior") tem danificado excessivamente nossa sociedade, gerando uma série de problemas culturais. Em si mesmo, o gamos é tóxico: produz isolamento da pessoa de outros relacionamentos, restringe suas escolhas e possibilidades e oferece em troca muito pouco.
Todos os possíveis bens que advém de viver sob o gamos são possíveis de se encontrar fora dele: a intimidade cultivada, relacionamentos significativos, carinho, o sexo, o amor, a conexão espiritual, o chamamento para a construção de um lar compartilhado... Nada disso depende do gamos, e, na verdade, fica melhor sem ele.
Isso acontece porque se adciona aos relacionamentos gâmicos paranóias de controle de outre e expectativas abusivas: a pessoa tem que corresponder às exigências de minha fantasia (que podem ser contraditórias entre si, inclusive), se torna responsável por suavizar minhas inseguranças e tem que construir um projeto cujo compromisso exige promessas de duração e de permanência.
A realidade simplesmente não é assim. As pessoas mudam, as relações mudam e podem não ter o mesmo conteúdo ao longo do tempo, projetos podem ser frágeis em relação à oportunidades de crescimento pessoal das partes envolvidas e assim por diante. O gamos aprisonará a pessoa se for preciso e não celebrará seu crescimento para fora do seu domínio: é uma forma de simbiose que danifica o senso de individualidade de cada partipante (seja num casal monogâmico ou em relacionamentos hierárquicos poliamorosos).
O que é preciso aqui, portanto, é compreender que a crítica dessa centralidade do gamos é importante, e por isso "estar num relacionamento" tem que ser ampliado.

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Ninguém "não está em (um) relacionamento" em algum momento. 
Relacionamento é qualquer tipo de conexão com qualquer pessoa, com animais, consigo mesme, com personagens virtuais da religião ou da ficção, com o planeta ou com ideais...
A vida humana é uma conexão profunda da pessoa com sua própria psique, com a cultura que a circunda e com outrem. Dizer que o humano é um animal social é um clichê necessário aqui: nossa psique é construída para beneficiar-se de conexões significativas com outras pessoas.
O conteúdo dessas conexões é que pode variar profundamente quando se trata de relacionamentos com outras pessoas: pode conter mais ou menos intimidade, pode conter afeto, sexo, confissões profundas, crenças compartilhadas, modos de vida compartilhados, um lar, um emprego, uma causa comum, meras formalidades, valoração afetiva (respeito, amiração, cuidado etc.)
O que um relacionamento contém não precisa danificar o outro de modo algum. Um único relacionamento ou um grupo restrito de relacionamentos entronados no centro de nossa vida não são capazes de suprir as necessidades profundas de uma pessoa. Cada ume de nós precisa ser integralmente conectade com formas diversas de relacionamentos.
Os diversos relacionamentos na nossa vida cumprem papéis de forma não-permanente: são fluidos. O que ontem uma relação continha, hoje não contém. Mesmo o gamos admite isso: um mero "lance" pode ser tornar um "romance". O que não consegue admitir é que os relacionamentos podem evoluir de forma diferente da escada rolante dos relacionamentos amorosos, isto é, os clichês de "avanço relacinal" segundo os modelos padronizados: ir morar juntes, ter filhes, comprar um carro, fazer a eurotrip juntes etc. Na vida real, as relações quase nunca seguem essa ordem. E pode ser que surja menos intimidade com o tempo, conforme as pessoas se modificam e se conectam com outras, e isso não deveria ser razão para um ressentimento venenoso ou abandono do contato com a outra pessoa, que, afinal, foi importante por tanto tempo para você.

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Nada disso significa glorificar a impermanência nas relações humanas como algo maravilhoso. O animal humano busca conexões estáveis e conforto e isso gera bastante sofrimento diante de culturas que glorificam essa estabilidade no gamos. Felizmente, existe coisa melhor por aí!
A origem do gamos nas sociedades com propriedade privada visa a determinação de clãs, famílias ou grupo de herança seguros, no qual a procedência das crianças é de fácil determinação. Reproduz sociedades classistas e exploratórias, sendo em si uma forma hierárquica e exploradora de relação.
Como foi dito, há uma forma superior de construção de segurança, previsibilidade e conforto relacional, com melhor adaptação à natureza humana e com mais realismo diante das nossas necessidades psíquicas: daí entra a ética.
O amor livre se empodera de formas mais adequadas e éticas de se relacionar, emprestadas do melhor de cada modelo de não-monogamia crítica:

1) O autorrelacionamento é aquele que deve estar em primeiro lugar sempre. A própria persona tem que ser cultivada. Você deve compreender a si mesme, estar em contato com sua própria vida interior e trabalhar, no ritmo que for cabível, na aprimoração das suas questões pessoais e no seu desenvolvimento físico, mental-emocional e espiritual. Isso garante que será capaz de ter relações satisfatórias com outrem e com o mundo;
2) Nenhuma forma de relacionamento fora de si deveria ter prioridade, seja ou não "amorosa". A vida relacional saudável demanda ricas amizades, grupos de afinidade e uma rede afetiva forte, cultivada de modo a alimentar a saúde física, mental-emocional e espiritual de todes. Daí o abandono do gamos (monogamia ou poliamor hierárquico);
3) A ética relacional exige sinceridade e respeito às determinação de outre. O diálogo é importantíssimo aqui: a compreensão das questões de outre não como exigência ou contrato, mas como contato afetivo, empatia e acolhimento;
4) A superação da quiriarquia (o sistema de opressões combinadas: machismo, racismo, LGBTfobia, binarismo etc.). Ou sua vida relacional contém a busca de desconstruir as opressões ou é um local privilegiado de sua reprodução. Nenhum meio termo é possível aqui, uma vez que não existe neutralidade diante das questões políticas da sociedade. Isso é especialmente verdadeiro nas relações familiares, gâmicas e "amorosas". É preciso criar escuta das partes que têm menos poder na pirâmide dos privilégios e precaver-se dos efeitos desses privilégios na relação, sempre refletindo conjuntamente com essas pessoas as formas de minimizar os danos dessas opressões;
5) Antiestatismo e anticapitalismo incondicionais. O amor livre é um projeto anarquista. Para as anarquistas, o Estado e o capital são estruturas que se beneficiam de ideologias que prejudicam as pessoas e limitam seu potencial, tais como como família tradicional, o gamos (especialmente a monogamia) e a afirmação dos sistemas de opressão - incluindo a opressão laboral e o colonialismo. A saúde relacional completa também representa nossa relação com a sociedade como um todo, assim com o mundo e a natureza. Somos militantes atives contra o estatismo, o capitalismo, a religião organizada, as prisões e manicômios, a propriedade privada dos meios de produção, as ditaduras "comunistas" com base no leninismo e toda forma de constrição de liberdade humana e do potencial para uma auto-governança coletivista, incluindo uma existência ecologicamente viável da nossa espécie no mundo.

Morte! Morte a quem se colocar no caminho da libertação humana e animal!

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