O caso Lázaro Barbosa e as acusações de "bruxaria"

Temos ouvido muito na mídia sobre o criminoso Lázaro Barbosa. Tendo matado duas pessoas no seu estado de origem, a Bahia, Lázaro fugiu do presídio e foi para Brasília, onde deu continuidade a uma série de crimes como assassinatos seriais, roubos, invasão de propriedade, agressão, sequestro, destruição de veículos e contínua resistência à prisão. O criminoso fugiu diversas vezes da polícia e ainda se encontra foragido no Goiás.

Seu perfil psicológico, traçado pelos psiquiatras do sistema carcerário, é tipicamente aquele descrito informalmente como "sociopata". Em termos mais médicos, Lázaro sofre do transtorno de personalidade antissocial. Sem dúvida, os relatos de suas vítimas que sobreviveram corroboram esse diagnóstico.

Enquanto está foragido, Lázaro representa um perigo terrível para a sociedade. Esperamos, com razão, que ele seja capturado e que encontre a justiça por seus crimes. Não é surpresa que alguns reacionários esperam ansiosamente por sua execução sumária e que haja aqui e ali surtos de ideamento justiceiro da parte de algumas pessoas impressionáveis e um pouco “fora da caixinha”. Um homem chegou até a fingir ser policial para perseguir o criminoso. A dúvida é como o homem esperava capturar Lázaro, sendo que este escapou a muitos cercos conduzido por agentes treinados. Mais mico ainda pagou a deputada que posou num helicóptero com um fuzil, prometendo pegar o foragido Lázaro.

 Acusações de "bruxaria"

 Um artigo jornalístico que veio a público no site de notícias Metrópoles afirma que "itens ligados à doutrina satanista teriam sido localizados na residência dele, no Entorno do DF". Um outro artigo da página Aventuras na História descreve os objetos como "anticristãos".



Os objetos que aparecem nessa foto vinculada à reportagem não são itens “anticristãos”. As imagens à esquerda mostram artigos de prática da Umbanda. A foto da direita tem símbolos do paganismo, que podem ter algum vínculo com o satanismo - mas essa religião não promove assassinatos nem promete destruir o cristianismo.

Sabemos que as fotos dos artigos de prática de Umbanda não foram encontrados na casa de Lázaro, mas num terreiro invadido pela polícia. Os policiais entraram espancando o caseiro do local e agredindo o pai de santo e tirando fotos de objetos de culto, que foram então veiculados na reportagem. O sacerdote em questão descreve o ocorrido em vídeo publicado também pelo site Metróples, no qual podemos ver os itens religiosos mencionados.

Ainda foi exibida nas notícias uma pichação dizendo "Satan", Satanás em inglês, que não sabemos ainda se tem qualquer ligação com Lázaro e se foi encontrada mesmo em sua residência. A aposta mais provável é que não, dado que a presença dos artigos mencionados acima em sua casa foi forjada pelos policiais. Consigo imaginar um talibã de farda pichando "Satan" e fotografando em seguida.



Algo que corrobora nossa hipótese de forja é o relato da esposa de Lázaro. Ela afirmou que o criminoso não tinha qualquer ligação com as práticas não-cristãs descritas. Descreveu como ele até teria sido pregador da religião cristã no presídio.

Práticas de intolerância religiosa

 Os discursos que estamos vendo demonstram a intolerância religiosa com a umbanda e com o satanismo. As duas religiões definitivamente não estão associadas a Lázaro Barbosa e nem com crimes e sacrifícios humanos.

O culto dos Exus, cujos objetos de adoração são exibidos como associação de Lázaro com "o satanismo" são apenas isso: cultos de um dado Orixá na doutrina da umbanda, que, em certas linhas, incorpora clichês do personagem do Satanás, como a capa vermelha, chifres, asas de morcego, caveiras e símbolos de tridente. Porém, essa religião não trabalha com quaisquer sacrifícios humanos e nega a existência de uma entidade quintessencialmente maligna chamada Satanás. Enfim, tais simbolismos integram uma religião cujos locais de culto foram invadidos por policiais fanáticos, que agrediram pessoas e buscaram o criminoso lá com uma hipótese de que tais religiões são "malignas". A sua lógica é essa: o criminoso é maligno, logo estaria no terreiro. Os policiais entraram no local já perguntando por ele.

Encontramos aqui uma confusão então da realidade com o conteúdo de tais doutrinas cristãs. Os policiais abusaram do seu poder e ainda utilizaram de cosmovisão fundamentalista para justificar a perseguição e a calúnia da religião da umbanda (e a mencionada invasão criminosa do local de culto).

Mais invisível na sociedade ultraconservadora do Brasil, o satanismo também é uma religião que tem muitas vertentes, como a “Igreja do Satanás” (Church of Satan), o “Templo Satânico” (The Satanic Temple) e outras. Nenhuma dessas linhas religiosas satânicas apoia assassinatos de nenhuma espécie. Não são cultos ao Satanás como uma entidade real e não têm a crença no maniqueísmo que os fundamentalistas cristãos associam a ele. Seus rituais não incorporam quaisquer sacrifícios, não envolvem agressão a crianças, animais e nem nada do tipo.

Assim, caracterizamos a própria formulação dos noticiários acima como intolerância religiosa e difamação do satanismo, bem como da umbanda. Além de um sensacionalismo brutal!

 Métodos medievais, problemas doutrinários

Escrito por dois teólogos e inquisidores em 1487, o livro Malleus Maleficarum ("A Marreta das Feiticeiras") conta com uma bula papal que autoriza a atividade inquisitorial e sua principal tese é de que a bruxaria existe e é usada por pessoas que conjuram o demônio para causar diversos males ao povo cristão e a animais de rebanho. O livro argumenta contra setores cristãos que desacreditavam na existência de uma conspiração de bruxas satânicas para tomar conta da Alemanha medieval. Descreve rituais feitos em certas fases da lua, com danças na floresta e nudez e outros atributos da prática de religiões não-cristãs e taxa tudo isso de satanismo.

De modo interessante, o livro demonstra a profunda misoginia presente em setores majoritários da Igreja Católica da época: se você fosse mulher, diversas coisas como ter um gato, morar só, fazer sexo, dançar de modo animado etc. seriam sinais de que você era uma "bruxa".

O livro veio num momento em que a Igreja Católica estava no auge de seu poder e buscava desalojar os últimos vestígios de outras religiões em territórios onde sua fé predominava.

O Malleus Maleficarum teve dezenas dezenas de reedições e se popularizou entre católicos e protestantes, sendo o manual que informou os julgamentos de bruxa também no mundo reformista cristão, incluindo as colônias da Nova Inglaterra. Dentre essas perseguições, a de Salem em 1693-4, em foi a mais famosa. As teorias do livro inquisitorial foram usadas para classificar a atividade das pessoas condenadas à morte nesses julgamentos.

Por milênios, muito antes da publicação do Malleus Maleficarum, as religiões judaico-cristãs já insistiam na destruição de outras religiões e de práticas que taxaram de "bruxaria", "feitiçaria" e "adoração ao demônio" (essa última particularmente cristã). Isso está em seus livros sagrados, sendo a justificação para teólogos como Tomás de Aquino e os escritores do manual mencionado teorizarem sobre esses “crimes”.

Acontece que outras religiões não reportam ao mesmo simbolismo e mitologia para eleger suas práticas e rituais. O que o cristianismo chama de bruxaria, um umbandista entende como culto de sua religião. O satanismo tem práticas que podem perturbar a estética cristã e isso que é feito muitas vezes de propósito. Acontece que o satanismo é uma religião moderna (surgida em 1966) que visa desprogramar os tabus de comportamento moralista e os danos psicológicos de superstições cristãs, como crença no inferno, existência de uma alma imortal, abominação do corpo e dos desejos, entre outras coisas. Porém é uma religião relativamente moderna. Nunca existiram seitas de cultistas diabólicos que sacrificavam bebês e adoravam aos personagens do mal na mitologia cristã.

Convencer os cristãos disso parece difícil mesmo hoje. Episódios assim são a continuidade do fenômeno chamado de pânico satânico, ou seja, de teorias conspiratórias que pregam, desde meados de 1970, a existência de seitas satânicas que buscam subverter a sociedade. Crimes foram associados a supostas seitas satânicas e até jogos de RPG. Existem grupos e profissionais dedicados à práticas pseudocientíficas na psicologia que visam "resgatar memórias" de "abuso ritual", o que é, na prática, implantar memórias com hipnose e sugestão – e isso até já foi levado em conta muitas vezes por juízes no mundo inteiro. Programas de TV inteiros foram dedicados a denúncias de "crimes ocultos".

O pânico satânico é um modo moderno que as instituições cristãs encontraram de dar continuidade com a tarefa histórica que motivou a escritura do Malleus Maleficarum: prover narrativas para sustentar a existência de conspirações maléficas que visariam minar as "bases cristãs" de nossa civilização. O privilégio cristão alimenta o fundamentalismo, que movimenta a intolerância e cria acusações tão medievais como "bruxaria", "satanismo" (como culto ao demônio) e outras coisas. A associação de tais coisas com criminosos e assassinos seriais é um dos argumentos favoritos para alimentar tais ideias.

É muito curioso que o mesmo não acontece quando o fundamentalismo cristão, esse sim muito real, inspira crimes, tais como a invasão do terreiro mencionado acima por policiais ou o assassinato de 77 pessoas pelo fanático cristão neonazista Anders Behring Breivik.

Podemos traçar de modo bem mais seguro uma relação entra as doutrinas passadas e presentes no cristianismo (assim como outras grandes religiões) com massacres, sacrifícios de animais, doutrinação e abuso infantil, etnocídio e outros crimes contra a humanidade. E estes crimes continuam ocorrendo. O discurso é sempre que "não eram os verdadeiros fiéis", ou "foram erros daquelas pessoas", mas a verdade é que as doutrinas dessas religiões e as falas de suas autoridades tiveram, tem e terão ligação com a glorificação da catequização, limpeza étnica, destruição de outras religiões e dominação cultural do mundo por seus dogmas.

Mas cuidado com os satanistas malvadões!

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