O "amor líquido" é culpa do sequestro afetivo

Quando um colega da terceira idade, o Bauman, escrevia sobre a liquidez na modernidade, eu o alertei para tomar cuidado quando chegasse na questão do amor para não reforçar a lógica gamocêntrica – seria fácil que interpretassem esse tema desse modo. Ele não me deu ouvidos e tratou a questão de modo muito lateral (por ser “careta”). Resultado: agora o termo "amor líquido" é associado com uma papagaiada em defesa do gamos (namoro, casamento e outros tipos de sequestro afetivo). 

O problema principal é que o gamos, na verdade, é parte da causa da solidão e superficialidade e precariedade dos vínculos e não oposto a essas tendências.

Pense no caso de uma pessoa que está procurando alguém para “assumir” (namoro, noivado, relacionamento aberto, trisal... Tudo que for descrito como "mais que amizade"). No momento em que alguma expectativa for quebrada, a pessoa tende a abandonar o contato com a outra subitamente e se afastar (mesmo que antes declarasse amores profundos). O mesmo ocorre no momento que surge uma "incompatibilidade" (nome fofo para desobediência aos mandos e desmandos do capricho alheio). Não é um vínculo mais profundo que a amizade, pois essa frequentemente é um fim em si mesmo e o sequestro afetivo toma a outra pessoa como meio para um fim, a objetificando. O gamos é a suprema objetificação. A lógica de consumo que o Bauman falou está inscrita na história dessas uniões gâmicas; nasceu delas. Além disso, elas estão sujeitas ao cansaço, à exaustão, ao abandono e ao tédio por ser tão claustrofóbicas e forçadas. A partir daí, se sobreviverem, serão mantidas com narrativas de reforço por repetição e sugestão: entra o romance, as declarações, promessas e todo tipo de prelúdio ao ghosting e à substituição eminente.

E, por último, além de serem vínculos frágeis e objetificantes em si, os relacionamentos gâmicos precarizam a rede de afetos que cada pessoa tem individualmente, pois tolhem o tempo de contato com outras pessoas com quem já nos relacionávamos e até vetam relações novas caso pareça uma ameaça a seu domínio exclusivo e paranoico. São convivências exaustivas por natureza. Pelo fato de as pessoas criarem “amizades” superficiais na busca de uma nova parceria para o sequestro gâmico, a ameaçada do gamos torna também superficial e objetificada a socialização em amplos contextos. É um problema cultural maior. Sua tensão ameaça e destroça a habilidade social de pessoas traumatizadas.

Algumas pessoas (incluindo o Bauman) parecem tristes com o aumento intenso do número de divórcios que começou a explodir no século passado. Vozes emocionadas sussurram algum saudosismo em relação ao tempo de sus avós, como se fosse uma espécie de “era de ouro do amor”. Afinal, “as pessoas consertavam as coisas ao invés de jogar fora!” Na verdade, as pessoas não podiam simplesmente separar se quisessem. Havia muitas sanções mesmo em períodos de divórcio legalmente aceito. As pessoas tinham que se conformar com décadas de agressão, abuso de substância, estupro, traição, contágio de ISTs etc., especialmente as mulheres.

Considero que a separação ser possível e frequente é um fato feliz. Vejo que muitas pessoas da minha idade já se separaram (inclusive eu mesmo) e a grande maioria de nós agradece esse fato, pois se encontravam em sequestros afetivos especialmente hostis e insustentáveis (é claro que todos eles são um pouco).

O fim da precariedade dos laços humanos jamais se dará pelo reforço de tradições insalubres como o aprisionamento prolongado obrigatório ou o romantismo e suas temáticas psicopatas. Ele virá com a revolução da vida afetiva – com o fim das hierarquias relacionais que distinguem algo como "apenas amizade" e "mais que amizade". Será efetivado com a mudança de paradigmas políticos na sociedade mais ampla, da competição à solidariedade, da propriedade privada ao comunismo, da família à criação comum de crianças etc. Nossa forma de construir isso hoje também está no modo de viver os vínculos, fazendo uma revolução acontecer na nossa recusa ao sequestro, à objetificação, ao descarte, ao aceite de relações tóxicas e à reprodução de uma ideia gamocêntrica de família.

Viva a revolução! (Nesse caso, o verbo “viver” está no imperativo).

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