Anarquia Relacional, socialismo e o âmbito privado
Se as propostas socialistas visam revirar e desmontar a opressão capitalista - cada uma dessas propostas com suas próprias teorias e métodos de ação no mundo - muito se concentrou no século 19, em geral, na superação de um eixo econômico da opressão. Se pensava na economia como a base das opressões combinadas (inicialmente de gênero e raça; depois, outras opressões que foram sendo reconhecidas paulatinamente). Isso é verdade não apenas para o marxismo, mas para o anarquismo social em sua origem (em Bakunin - vou deixar o mutualismo quieto hoje).
O tempo
passou, o tempo voou e as revoluções do século 19 e começo do século 20 não
tiveram o êxito veloz em destruir as instituições e ideologias de dominação
social que se esperava com a conquista revolucionária. Você tem que entender
que muita gente pensava que a revolução era eminente e que as pessoas estavam
"despertando" e logo desmantelariam toda a opressão. Por exemplo: com
a vitória do partido bolchevique na Rússia, algumas feministas soviéticas
pensavam que logo a família desapareceria, em questão de anos.
Olhando
para a história do socialismo "real", eu poderia entrar num debate
sobre o alcance dessas conquistas revolucionárias e a traição dos partidos
comunistas, mas é suficiente dizer, para os fins desse texto, que as revoluções
socialistas que concentraram numa mudança "primeiro econômica e depois
ideológica" não tiveram qualquer sucesso em nenhum dos dois casos: nessas
experiências, não vimos avanços consistentes e persistentes nem no eixo da luta
de classes (continuou havendo classe dominante, sendo dessa vez a burocracia
comunista), nem no âmbito das ideologias opressivas “laterais”. Seguiram sem “grandes
saltos” os problemas na condição da mulher, no preconceito contra a “união
unissexual” (LGBTQIA+ da época), a existência do etnocentrismo e o papel de
aparelhos ideológicos do Estado em oprimir e danificar os modos de vida da
população e fortalecer ideologias de conformação e uniformização da sociedade
(escola, prisão, família, manicômio, exército regular etc.).
Já as
experiências socialistas que visaram abolir de partida esses aparelhos
ideológicos e organizar a sociedade a partir da autogestão tiveram um êxito
maior em ver algumas mudanças estruturais tanto na economia como na forma que
funciona o sistema sexo/gênero, a educação, o tratamento de questões raciais e étnicas,
a distribuição do trabalho e do lazer e outras questões “meramente ideológicas”.
Porém, essas experiências avançadas em geral encontraram oposição tanto do
capitalismo quanto de "Estados Operários" apodrecidos, sendo
perseguidas e derrubadas onde se fundaram. Além disso, essas experiências
tiveram sua história apagada pelas narrativas dominantes da Guerra Fria de um lado e de outro, sendo
que até hoje estão sendo resgatadas pela historiografia.
Podemos
definir que os poderes capitalistas e “comunistas” consolidaram formas de estatismo
brutal e contrarrevolucionário que colocaram o mundo num estado de retrocessos
tamanhos, que foram afrouxando no final do século 20 na Europa e nas décadas
consecutivas nas “periferias do mundo” (discordo do termo, mas o uso). Temos
que o êxito de organização socialista só tem sido possível a partir do
fim do século 20 ou começo do século 21, com as revolução zapatista e a
experiência confederalista-democrática no nordeste sírio, respectivamente. Os resultados dessas
concepções já partem da superação do materialismo "economicamente
estruturado", pois a questão da organização não questiona primariamente a
economia, mas o conjunto de opressões combinadas como um só problema
(econômica, de gênero, de raça, de credo, de idade, de orientação sexual etc.)
O motivo
desse sucesso maior de uma abordagem materialista contemporânea vem da
experiência com os fracassos pregressos e com o avanço de propostas mais
realistas, mais ajustadas com as possibilidades reais. É o fim de uma crença
messiânica num inevitável socialismo que está chegando a qualquer momento.
Vamos
encarar alguns fatos: a revolução total não é eminente. Pode nem acontecer! Não
existe nenhum caráter científico em modelos marxianos de sociologia. Logo, as
mudanças ocorrem num ritmo que não é o que sonhavam os socialistas até a
primeira metade do século 20. Os "Estados Operários" são capitalismo
de estado engatinhando na contramão do socialismo, rumo a uma fortíssima guerra
cultural que visa esvaziar ainda mais os resquícios de liberdade existentes no
seio do capitalismo tardio. As teorias totalitárias do socialismo não apenas
falharam, como as pessoas que as seguem falharam em notar o nível do seu
fracasso, agitando bandeiras “revolucionárias” que sepultam a revolução.
E isso se
deve à falta de uma percepção básica: as opressões não estão baseadas apenas
num problema social maior e sistêmico, mas também no que se convém chamar de
"pessoal", "privado" etc. E nenhum dos dois é “mais
fundamental” ou “mais urgente”. Ambos os âmbitos são a mesma coisa em
diferentes escalas, se atravessam um ao outro, são a execução da mesma coisa.
Vemos um
sem-número de pessoas politicamente engajadas em modificar a sociedade, mas que
em suas práticas privadas continuam reproduzindo os papéis de gênero, o
hetero-cis-alossexismo e outras ideologias. Não olham a sério para debates
acerca de mudanças possíveis na vida “pessoal”. É por isso que seguirão
falhando e falharão em notar sua falha.
As lutas
políticas "maiores" não sofrem por um olhar e um debate sobre o que é
"privado", justamente porque o privado é político e a vida pessoal
não é gerida por uma espécie de livre-arbítrio inviolável. Não são escolhas
"neutras" ou “livres”. O nosso convívio, o modo de gerir a vida
pessoal e tudo isso aí está dado pelas possibilidades da sociedade que nos
cerca. Aí é que de reproduzem as ideologias hegemônicas e colonizadoras. A crítica
dos problemas privados constitui uma luta "de grande escala”, pois estão
lidando com a realidade do problema em sua base material.
Por vezes,
eu critico o socialismo centrado “na grande economia” como sendo idealista - o
que deixa bem frustrada uma parcela das pessoas que cultuam o marxismo como uma
religião irrefutável e irretocável. Porém, esse é um fato inegociável para
qualquer socialista: o estabelecimento de uma suposta primazia do
econômico/coletivo sobre o ideológico/pessoal é um tipo de idealismo. Não tem
eficácia. É um falso materialismo baseado numa "dialética freestyle" que consiste em erro.
Em termos
mais refinados: foi preciso aprimorar o materialismo e livrá-lo dessas
influências principistas, isto é, dessas leituras que encaram o texto marxiano
como escritura sagrada e que se recusam a reconhecer erros em Marx e Engels (ou
até outras pessoas... não subestime o principismo anarquista!).
O
materialismo se ampliou, se corrigiu e se livrou do principismo com disciplinas
marxistas revisionistas, como Análise do Discurso (em Bakhtin) e a posição
gramsciana, e com as sociologias anarquistas, como a retomada de Proudhon, o
comunalismo de Bookchin e os processos revolucionários em Chiapas e na Síria.
O
materialismo que consegue compreender a necessidade de revisões e ampliações
por vezes está capturado pelo academicismo, existindo como produção teórica
divorciada da prática e debatida sobretudo por pessoas de classes médias e
altas. Isso é especialmente verdade nos vieses marxistas. Quando falamos em
anarquismo, fica claro que a academia está esvaziada da presença de estudos
nesse tocante (embora haja alguns). Já a prática está saturada de novos
movimentos libertários. Coletivos na periferia produzem debates focados na
prática, com formação de qualidade e ampliação de possibilidades (e os dois pés
enterrados no chão da realidade possível). O anarquismo brilha hoje em iniciativas fora do sindicalismo raivoso que ao definiu por décadas. Vemos "novos anarquismos" em atos de rua, educação libertária, grupos de educação, rádio comunitária,
organização de setores ultraprecarizados, ações de auxílio-mútuo entre
comunidades pobres, ativismo indígena e outras formas de mobilização geralmente
ignoradas pelo socialismo partidário.
E sim, o
anarquismo visa criar bolsões de ideologia subversiva dentro do capitalismo.
Não olhamos feio para cooperativas, extensão de serviços gratuitos, fundos
coletivos e promoção de estilos de vida revolucionários.
Foi com
esse viés que nasceu a Anarquia Relacional (AR), uma proposta de Andie Nordgren
para trabalhar a criação de redes de apoio baseadas na livre associação. A AR
não é uma continuação do amor livre, mas uma crítica social mais profunda e
estrutural do sistema de opressões. Algumas pessoas explicam AR como um tipo de
poliamor ou não-monogamia, mas a proposta está muito além desse viés “amoroso”,
vindo a repensar todas as nossas relações humanas. Além disso, a AR tende a
desprezar a divisão das relações entre "amorosas" e "não-amorosas".
Deixamos totalmente de lado a prática de "amor de casal" para
construir de modo mais crítico e libertário o que significa afeto, direito e privilégio.
Se isso incluir liberdade da monogamia, é uma pequena parte de um debate colossalmente maior.
É extremamente
necessário para o prosseguimento de um processo revolucionário. As redes
afetivas serão a célula revolucionária exemplar para a sociedade, solapando o
papel da família e demolindo o sistema sexo/gênero em sua base - nas relações
concretas!
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