A construção de uma rede de afeto como luta política

Um dos projetos anarcoamorosos é retirar o valor especial do casamento e construção de família que a lógica do gamos coloca, justamente por esse ser o modo de reprodução ideológico das culturas patriarcais e de classe.

Daí, precisamos colocar algo no lugar, e por isso que estamos falando em anarquia relacional. Se fosse apenas uma crítica à monogamia ou ao romance, seria teoria poliamorista ou feminista; o projeto anarquista inclui essas coisas, mas vai além disso (1). Eu comentei algumas vezes que ele vem com o combate da quiriarquia (opressões estruturais como a exploração capitalista, o patriarcado, a supremacia branca, o alossexismo, a transfobia, a hierarquia das capacidades, das idades etc.). Ora, a quiriarquia é um conjunto de coisas associadas de modo combinado e estruturalmente dependente, logo a demolição do seu conjunto precisa de uma abordagem de conjunto.

A luta social tem sido a especialidade do anarquismo, mas existem em alguns meios anarquistas dois vícios opostos e igualmente limitantes:

1) a luta social acima do "estilo de vida", descartando a importância de “opções pessoais”;

2) a crença individualista de que o anarquismo emana da individualidade liberta desorganizada e contrária a organização e que isso por si só basta.

Precisamos tanto de luta social e participação ativa nos processos políticos como construir onde estamos e na nossa vida mudanças estruturais que contrapõem à sociedade atual e suas lógicas naturalizadas. Cooperativas, amor livre, consumo consciente, boicote, educação libertária e um modo de vida contra-hegemônico beneficiam e impulsionam a ação organizacional de modo positivo.

No campo da vida afetiva, o anarquismo relacional é o modo de vida libertário mais atualizado.

 

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As redes de afeto são para a vida afetiva como a comuna é para a vida política das comunidades. A família sai de cena: não é mais o grande sonho morar com mozão e ter os bebês, até porque crianças não deveriam pertencer como responsabilidade especial a um par de pessoas adultas. O romance não é superior.

O que chamamos de amizade é expandido e ganha o centro da afetividade. É uma amizade aumentada em sua significação, que pode admitir conteúdos diversos, incluindo a sexualidade genital se for o caso nessa relação. Pode não a incluir e não se torna menos por isso.

A amizade para mim é o companheirismo. Sempre será. Se eu incluir grande intimidade física e emocional com uma pessoa, isso não a torna minha companheira ou "mais que amiga". Se fosse assim, as chances são que essa traria vícios românticos que minam nossa amizade: expectativas não-comunicadas, tentativa de controle, fusão das vivências e violência se percebesse que eu não estivesse me amoldando a seus sonhos. O companheirismo que prega uma intimidade “maior que amizade” é, na verdade, um sequestro e uma invenção da religiões burguesas.

 

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Penso em viver em comuna com pessoas que tenham na sua vida um projeto anticapitalista libertário. Isso vai ser construído aos poucos. As pessoas vão ir e vir quando quiserem, sendo flutuante a composição de moradorus. Nossa morada será um QG contra a sociedade estatal: lá faremos cartazes, escreveremos panfletos e livros, organizaremos palestras e debates, aprenderemos e ensinaremos técnicas de resistência dentro do sistema e prepararemos a guerra civil para destronar o Estado e liquidar o leninismo. Lá, as crianças serão responsabilidade de todas as pessoas, assim como a gente adulta. O afeto e o cuidado generalizados e constantes serão um testemunho do real significado de "amor" e "companheirismo". Opressões não terão lugar algum, nem hierarquias.

Comparando em níveis de amor, cuidado, afeto e companheirismo, qualquer família tradicional ficará no chinelo perto de nossa comuna devido à suas limitações inerentes.

Algumas pessoas caretas e amargas encherão seu coração de inveja da nossa liberdade e chamarão nossa casa de “república hippie”, "antro de putarias", "centro de maconharia", "base comunista" e outras coisas. Isso me encherá de orgulho. Ao mesmo tempo, alguma alma curiosa furtivamente se aproximará para conhecer o que fazemos e isso quebrará todos seus preconceitos. Essa pessoa sairá de lá com um furo na sua visão de mundo antiga.

Células desse tipo se multiplicarão no mundo todo e serão um dos pontos de partida para a transformação radical que enterrará nossa era no passado como algo desprezível, tal como vemos hoje uma sociedade escravista da antiguidade.

Essa é a minha esperança, pelo menos. Quase um artigo de fé, se quer saber. Nada disso está dado nem garantido. Porém, surge um sorriso quando essas maquinações passam pela minha mente.

Esse é o meu projeto anarcoamoroso pessoal.

 

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Mesmo que nada disso venha a acontecer...

Vivendo na amarga Babilônia e transitando entre famílias e empregos regulares, sem morar em comuna nem nada, já vivo práticas libertárias na afetividade (e na atividade). Minha rede de afetos não contém gamos, mas contém muito mais cuidado e delicadeza na sua construção do que os gamos que já vivi.

Há contradições, decerto; algumas vêm de nossas dificuldades pessoais e outras são impostas pelas ideologias e instituições do nosso mundo atual. Só que continua sendo possível facilitar, através dessa prática libertária, muito cuidado, amor, companheirismo, superação de traumas e medos e disposição para a amarga luta política que se assoma diante de nós.

 

(1) A anarquia relacional não é não-monogâmica em si, mas exclui o gamos. Não existe essa relação amorosa como sequestro. Isso poderia ser considerado não-monogâmico, mesmo se determinada pessoa anarquista tivesse, num momento de sua vida mais ou menos longo, uma só parceria “amorosa” (péssima palavra).

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