Amatonormatividade como desamor e o terrorismo anarquista

A amatonormatividade é uma pressão para que a felicidade seja expressa como a construção de casais. Essa ideia envolve o mito de que a humanidade tem a construção de casais como algo natural, igual em toda sociedade. Talvez, em leituras menos eurocêntricas, se aceite a poligamia de um tipo ou outro.

Eu argumentaria, porém, que mesmo nos debates poliamoristas (ou não-monogâmicos) ainda existe uma forte pressão para a amatonormatividade. A própria temática natural do poliamor e da não-monogamia é a pluralidade de afetos em si, o que envolve um tipo de "afeto" entendido como "mais que amizade" e vê no "sexual/amoroso/romântico" algo que tem um maior peso e hierarquia. (1)

O anarquismo relacional é o estudo que se faz sobre a quebra dos paradigmas relacionais tóxicos da sociedade capitalista moderna (e que pode servir para a crítica de outras sociedades que tenham problemas análogos). Para nós, pessoas anarco-amorosas, a quebra da amatonormatividade significa colocar o afeto em seu lugar. As relações que não têm lógica de casal e sequestro afetivo são o lugar do afeto real, pois não objetificam a pessoa e não despejam sobre ela uma série de demandas irreais e funestas. 

Para nada significa condenar quem viva algum tipo de namoro, casamento, polículo ou coisa que tenha suas hierarquias. Reconhecemos que as contradições sociais onipresentes não são um fator que as pessoas escolhem, mas que nos é imposto e que pode ser difícil desconstruir. Se alguém estiver se sentindo feliz e satisfeite no seio desse tipo de amor gâmico, que seja feliz e continue. A crítica é à estrutura normativa, e não às pessoas; pode-se criticar as pessoas quando usam os pressupostos amatonormativos e outras armas desse discurso de sequestro afetivo para danificar outrem.

Pois bem, então o que significa essa crítica da amatonormatividade em si, como estrutura? Alguns pontos importantes:

-Não existe na natureza humana uma tendência a viver como casais ou polículo fixo (poligamia). Cada sociedade fez isso de uma forma diferente num passado remoto e apenas num tempo muito recente (alguns milhares de anos) essa norma foi criada e reforçada com discurso religioso e pseudocientífico;

-A amatonormatividade é invasiva como toda norma: usada para criticar e deslegitimar vivências diversas. Quando alguém decide que ter criança, lar ou intimidade fora do casal e do polículo, se mobilizam modos de atacar essa pessoa e sua vida;

-A maioria das pessoas age dentro dessa lógica de modo tão impensado e cego que nem sequer notam seus pressupostos agindo em suas falars pensamentos, interações e expectativas.

Com isso, pretendo também falar algo contra o modelo amatonormativo, seja na monogamia, poligamia tradicional, poliamor "ético" (poligamia moderna) e até em meios não-monogâmicos "políticos":

Esse modelo é danoso para as vivências em geral. Não afeta apenas as pessoas na construção de sua intimidade com a(s) parte(s) de seu contrato "amoroso", mas atravessa as relações que são "não-amorosas", as minimizando e fazendo delas possíveis campos de caçada para a captura amorosa. Isso é objetificação de um tipo sinistro.

Observemos interações entre um homem e uma mulher heterossexuais ou qualquer outro arranjo do tipo "compatível": existe aí uma tensão que mina a construção de conexões que não sejam de sequestro afetivo. E se uma das partes estiver "amarrada" por um gamos, a outra parte precisa afirmar o desinteresse. Ou pode haver a dinâmica do adultério, que em si é tóxica na maioria das vezes. (2) Tudo isso afeta interações em grupo, onde as pessoas jovens ou adultas presentes começam a organizar de modo mais ou menos inconsciente uma necessidade de afirmar e negar interesses sexuais/amorosos. Isso entra em contato também com os padrões de beleza, heteronormatividade, cisnormatividade, machismo, racismo e outras formas de opressão, pois o modo como esse arranjo de interesses se expressa e que tipo de conexões são afirmadas/negadas está de acordo com as tensões culturais.

É preciso desmantelar esse esquema a partir do nosso próprio modo de se relacionar: daí que o estranhamento ativo do que significa "amoroso", "íntimo", "sexual", "somente amizade", "mais que amizade" e outras coisas entra em cena. É uma forma de terrorismo relacional (usando o estranhamento para desmontar o discurso da outra pessoa) e uma forma de se relacionar (em todas as relações de sua vida). 

(1) A não-monogamia política compra algumas brigas anarco-amorosas, apesar de ainda tematizar demais o "amoroso" num sentido amatonormativo.

(2) Para "relacionamentos abertos", pode surgir entre pessoas adultas compatíveis a dinâmica da "pessoa secundária", ou seja, que não está no namoro ou casamento. É um lugar bem problemático para se estar, independente dos discursos de consentimento que se usa para justificar esse arranjo.

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