As relações "afetivas" e a intimidade

Relações afetivas geralmente são descritas como aquelas que incluem elementos românticos/sexuais ou semelhantes (podem ser assexuais, mas tem uma intimidade amatonormativa). Essa definição não é exaustiva, pois é reconhecido que as relações de amizade, familiares e até profissionais têm (ou podem ter) uma dimensão afetiva e amorosa.
A Anarquia Relacional vem criticar a ideia de que um afeto "de casal" seja mais verdadeiro ou seja "o amor", uma crítica que superou os paradigmas do século XX (quando a palavra "amor" era basicamente voltada para a lógica do casal/polículo).
 
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A intimidade é um elemento que as relações humanas podem ver acontecer de formas diversas e cuja classificação desafia a normatividade. Nossa cultura gamocêntrica considera o amor romântico e de casal mais amoroso, mais afetivo e mais íntimo e isso tem relação com ideologias de controle social perigosas e opressivas.
A Anarquia Relacional é fundada na dissolução da forma-casal como ideal, e também inclui a recusa de formas hierárquicas de não-monogamia, onde a lógica disney se encontra meramente multiplicada, mas ainda ocupa um lugar perigosamente prioritário na vida das pessoas.
Fica visível para quem observa um grupo de pessoas convivendo que as relações desse tipo são locais da afirmação de privilégios de toda sorte (de gênero, raça, sexualidade, capacidade e outros tipos) e deformam todas as interações sociais na cultura onde estão presentes. As relações não-gâmicas ficam desprivilegiadas, a tensão para a formação de casais cria ferramentas de exclusão de corpos trans e não-brancos e a objetificação sexual (seja da pessoa controlada pela relação exclusiva ou da pessoa que, por contraste, é usada sem se tornar casal).
Por isso, o projeto amoroso anarquista visa desestabilizar as ideias amatonormativas opressivas. Nós precisamos normalizar o afeto livre e o erotismo para além da objetificação. Toda a lógica disney deve ser destruída dentro das relações. E com relações, eu quero dizer todas elas, pois tal lógica afeta negativamente nossa vida em geral e nossa própria visão do que é afeto e intimidade.

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Somente onde não houver casal pode haver amor.
Onde houver casal, há um Estado e suas leis matando o amor.

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A intimidade nos tempos de monogamia serial tem um funcionamento venenoso, pois se assume que um grau intenso de intimidade instantânea é algo funcional. Ao mesmo tempo, porém, as pessoas estão igualmente prontas para jogar fora a pessoa que não atende aos pressupostos do amor disney.
Pode ter certeza que isso acontece igualmente nos meios não-monogâmicos que vemos por aí, que defendem meramente uma multiplicidade de amores disney. Pode acontecer com as pessoas conforme elas se relacionam incluindo o elemento "afetivo" numa relação que era "apenas amizade",
Isso é assim porque é impossível suspender todas as coisas da cultura onde crescemos; antes, é preciso desmontá-las uma por uma com tranquilidade e clareza. Um processo demorado e que aposta na maturidade e no diálogo.
Diante do problema do afeto, o mito do livre-arbítrio derrete: as pessoas não conseguem eleger quais modos de pensar orientam seu pensamento, sua emoção, sua amizade, sua visão afetiva e sua vida em última instância. Isso vale para muitas coisas além da intimidade: é o funcionamento da ideologia e do interdiscurso (o conjunto de visões de mundo compartilhadas dentro da qual nossa persona é construída).
Felizmente, o projeto Anarquista Relacional nos dá ferramentas e orientações para desmontar esses pressupostos lentamente. No seio do que é afetivo, essas orientações são os 8 pontos inaugurais dessa revolução afetiva
(Há outros debates, que penetraram profundamente inclusive nos meios não-monogâmicos que não reivindicam o anarquismo. As não-monogamias já nasceram com a crítica do casamento eterno e outras coisas assim.)

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A intimidade não se dá primariamente onde existe o amor disney exclusivo? Ela está ameaçada por tal amor, na verdade. Esse amor sequestrador é anti-íntimo, pois não visa conhecer e construir com a outra pessoa através do diálogo. Na-na-ni-na-não! Ele exige e "toma de assalto". Finge ser "a verdade" sobre o amor e manipula as situações para punir quem discorda.
Qualquer tipo de amor disney inclui pressupostos violentos do que seria "o amor verdadeiro" e de como amar. E tem uma arma apontada para sua cabeça!
Podemos dizer que o amor disney é o creme venenoso de expectativas monogâmicas que ronda as relações íntimas lidas como "mais que amizade", as tornando um local de sofrimento e desacordo.
Felizmente, a intimidade não precisa de nada disso e pode ser feita sobre medida para cada relação humana. O conteúdo dessa relação incluindo ou não sexo, carícias e erotismo num sentido amplo não precisa reportar à nenhum clichê. A construção exige diálogo profundo e conhecimento de suas próprias expectativas, incluindo aquelas que não são saudáveis.
Para o projeto anarco-amoroso, é preciso desmantelar a ideia de que expressões eróticas tenham que vir com certas qualidades ou "não ser de verdade".

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Nosso objetivo é o fortalecimento dos vínculos reais e voluntários, eliminando qualquer pressuposto não assumido.
Surge uma rede de relações que nossa sociedade descreveria como "amizades". O nome até serve bem, embora tenha seus pressupostos equivocados também.
Essas relações são pautadas na comunicação delicada de expectativas e limites pessoais e no respeito pela autonomia da outra pessoa.
Somente é possível construir uma intimidade curada e livre quando abandonarmos o sequestro e a violência em todas as nossas formas de afeto. Isso inclui não mais hierarquizar as pessoas.
Pode ser que ainda usemos palavras descritivas como "amizade", "companheirismo" etc. Pode ser que não as usemos; o importante aqui é que os pressupostos estão revirados para além do rótulo. O uso ou não uso de algum rótulo, assim como qualquer outra característica da relação cabe às pessoas envolvidas decidir.

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Ao contrário do que muitas pessoas pensam, as relações anárquicas são relações de responsabilidade afetiva extrema e cuidado. Elas têm muito mais cuidado do que as relações de sequestro e amizades automáticas e não significam abandono, descuido ou individualismo em absoluto.
Seu radicalismo não ameaça pessoas que aparentemente precisariam de "mais delicadeza", mas cria mais mecanismos de empoderamento e proteção, muito mais do que o romance e as hierarquias.
Muitas pessoas pensam que liberdade se opõe à coletividade. Toda a ideologia amorosa gâmica tem esse caráter de criar uma ideia de junção "mais significativa" através da demolição das individualidades envolvidas, promovendo a fusão das pessoas e aplaudindo concessões que atacam a autonomia. Infelizmente, o resultado não é amoroso, mas opressivo e tóxico. Melhor descartar isso o quanto antes e jamais aceitar nada disso.
Nós, anarquistas relacionais, acreditamos que a responsabilidade afetiva só é possível em liberdade. "Amor livre é pleonasmo", dizia-se. Isso é mais verdade no século XXI. Não existe um choque real ou conflito entre autonomia para si e cuidado com a outra pessoa. Esse é um mito romântico persistente que danifica muitos discursos não-monogâmicos e afetivos, e que tolhe nossa construção de uma sociedade anticapitalista eficiente.
Somente com a demolição desse mito é possível ver nascer uma poderosa forma de afeto responsável, delicada e verdadeiramente interessada em conhecer e investigar as necessidades da outra pessoa. Isso vale para todas as nossas relações humanas.
Isso só pode funcionar lado a lado com ação anticapitalista e combate aos privilégios de raça, gênero, sexualidade, classe, capacidade, faixa etária e outros.

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