Dois anos LIVRE da crença sobrenatural: um relato

Na minha infância e adolescência, tive a sorte de não ter a religião empurrada garganta abaixo: minha mãe achava a catequese uma forma invasiva e doutrinadora de ensino e preferia que eu aprendesse a religião ou espiritualidade (1) sozinha. Não era surpreendente, então, que eu achasse igreja um lugar muito chato e nunca criasse uma ideia de reverência com o dogma cristão. Eu tenho a impressão que muitas das pessoas que têm esse forte senso de reverência são assim por doutrinação infantil.

Conforme passou o tempo, eu passei a me interessar por coisas sobrenaturais e religiosas. Eu li o Livro dos Espíritos aos quinze anos, acessei ideias pagãs e panteístas ao longo dos próximos anos, li textos hindus e budistas aos vinte e comecei a consagrar a Ayahuasca em rituais neoxamânicos aos vinte e um anos, onde adquiri algumas crenças místicas que iam para um lado bem universalista. Você sabe, aquela ideia de que "todos os grandes mestres são verdadeiros", "todas as religiões contém a verdade" e tudo mais. São ideias irreligiosas no sentido de que não são organizadas como religião, mas são religiosas no sentido de confiar em experiências místicas como evidência.

Com os anos, eu estudei mais profundamente sobre filosofia, antropologia e política, me envolvendo numa busca pelo aprendizado que nunca acabou. Essas questões me fizeram e me fazem mergulhar em questionamentos, refutações, descobertas, redescobertas e jornadas intelectuais, emocionais e pessoais que me tocam profundamente e que me fazem desconstruir e reconstruir minha visão de mundo, minha autorrelação e meu modo de manifestar. Para mim, até hoje considero isso como experiências espirituais (1), mesmo que não sejam do tipo místico ou sobrenatural.

Tendo transtorno de uso de álcool (alcoolismo), eu tive que lidar com muitos danos que o descontrole da bebida e do uso de drogas causaram na minha vida, e foi nessa época que mais me identifiquei com uma busca por espiritualidade no sentido religioso.

Eu sempre achei a ideia de um deus criador do universo uma ideia difícil de acreditar. Assim, mesmo no auge do meu neoxamanismo universalista, nunca enxerguei o universo como dirigido por uma força inteligente e nunca gostei muito de adoração e devoção a uma entidade. Jesus Cristo ou alguma outra pessoa na história jamais ganharam minha simpatia como "a melhor pessoa de todas", e eu sempre tive dúvida da literalidade das escrituras sagradas de todas as religiões. Sempre achei que continham metáforas, até fazer vinte e sete anos. Foi nessa época que comecei a seguir o budismo Teravada, uma corrente do budismo sul-asiático. 

Já gostava especialmente do budismo a muitos anos, considerando-o a mais interessante das doutrinas espirituais e religiosas da história: não tem deus criador nenhum, descarta ideias de dualidade yin-yang (2), rejeita a devoção como condição para a salvação e não defende a eficácia da oração intercessória... Enfim, o budismo não tem essas e outras coisas muito uga-buga que a religião dependente de seres sobrenaturais têm na sua base e essas coisas sempre me pareceram falsas e me ofenderam um pouco (num sentido estético e intelectual).

Então, aos vinte e sete anos eu tomei os cinco preceitos (3) e comecei a praticar o budismo Teravada, o que durou quase seis anos. Eu li a maioria dos textos e também de outras tradições budistas, participava de palestras, retiros de meditação e construí um altar.

Todas as manhãs, a partir dos vinte e sete anos, eu passei a fazer uma prática diante do altar, recitando agradecimentos ao Buda, à sua doutrina (o Darma) e ao corpo de discípulos (o Sanga), além de recitar um ensinamento sobre amor universal a todos os seres e começar uma meditação. Essa prática, aliada com a tomada dos preceitos, foi muito interessante enquanto durou.

Porém, eu comecei a perceber depois de alguns anos que o budismo é uma religião como qualquer outra, contendo elementos pacificadores para defender a manutenção da ordem vigente e acalmar o populacho. Ele foi usado para justificar guerras, monarquias, abusos e até o assassinato de muçulmanes.

O monge que me ensinava tinha uma postura altamente anti-intelectual, falando que somente a busca do despertar valia a pena nessa vida e que o resto eram vaidades. Coisas como namorar, fazer sexo, jogar jogos, assistir filmes, ler livros e ouvir música seriam "do mundo". Obviamente, ele andava meio amargo com toda a disciplina a que estava sendo submetido e transbordava essa coisa ranzinza sobre nós. Ele também chegou a fazer comentários transfóbicos num ensinamento e nos disse que política era algo que não valia a pena discutir em nenhum momento, pois só trazia problemas (era época da eleição que levaria o Bostonazi ao poder).

Eu comecei a perceber que as outras seitas budistas, mesmo algumas menos ascéticas, continham também esses problemas em algumas doses, especialmente o anti-intelectualismo e a presença de alguns mestres (todos homens) que tentavam neutralizar a política e se recusavam a fazer alguns debates. Tem um monge zen-budista famoso no Brasil que condenou o fato da Monja Coen simpatizar com Lula e ir visitá-lo na cadeia. Engraçado! Esse monge é um empresário rico... (4)

Existiam e existem pessoas bem intencionadas no budismo que brigam contra as contradições internas da religião e tentam a trazer para o dia de hoje, mas a maioria destas está no ocidente. Na Ásia, a doutrina budista se corrompeu profundamente e se tornou culto de espíritos benignos e "budas celestiais" (uma invenção posterior); superstição extrema, crenças pseudocientíficas, negacionismo da ciência e obscurantismo ideológico são presentes em todos esses países tradicionalmente budistas. A forma tradicional do budismo é extremamente conservadora e ainda permanece como o pilar de ensinamentos patriarcais, de obediência civil e de aquietamento diante de ditaduras bizarras e extremamente violentas. Hoje em dia, existe o budismo liberal, que quer fazer avançar os interesses capitalistas nesses países. 

Tudo que podemos falar de problemas políticos e sociais do cristianismo em algum grau existe na história budista, exceto a ênfase exagerada no proselitismo.

Eu comecei a me decepcionar extremamente e perder a fé. Num nível de compreender os próprios ensinamentos, contradições que antes eu ignorava ou racionalizava ficaram mais aparentes. A mais ou menos dois anos e três meses, eu anunciei que havia abandonado minha religião budista. Depois, tive uma breve recaída e fiz uma última prática de altar e meditação budista, mas senti que aquilo foi a coisa mais forçada e falsa da minha vida.

A dois anos eu abandonei totalmente as práticas e desfiz o altar pela última vez, parando de frequentar espaços de ensinamento também. Foi a única religião que segui na vida inteira e na qual tentei ser bem ortodoxo e compreender a raiz dos ensinamentos, chegando a crer na existência das coisas descritas em seus textos (embora nunca totalmente ao pé da letra).

Ironicamente, foi um ensinamento atribuído ao Buda que me libertou do budismo: 

"Dessa forma, (...) não se deixem levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, ‘Este contemplativo é o nosso mestre.’" (Kalama Sutta AN 3.65).

Realmente, a doutrina budista é uma dessas coisas que chama a dúvida cética. É cheia de furos lógicos, e o maior deles é crer que a experiência de êxtase e supostas memórias de outras vidas são critério de verdade para alguma coisa. Pessoas meditando em retiros por horas e horas de modo a interromper o pensamento crítico todos os dias após recitar esses ensinamentos em língua litúrgica como cantos hipnóticos e repetitivos, praticando também o constante direcionamento de seus pensamentos à crença de que existem outras vidas e o despertar acabam se sugestionando. A mente tão sugestionada vai ter alucinações que "confirmam" tais fenômenos de outras vidas, outros fenômenos sobrenaturais e até o mais perigoso de todos: o de ter se tornado uma pessoa desperta.

Perceba que os "budas vivos" de hoje em dia são pessoas extremamente ordinárias em sua humanidade, inclusive um tanto arrogantes, cheias de pomposidade. Alguns gurus adorados como budas vivos falam muitas bobagens e no máximo, com discursos genéricos e muito retóricos, impressionam audiências suscetíveis. Jamais um grande mestre ou guru me impressionou com algo que realmente só poderia vir de uma mente desperta ou coisa assim, mas muitas vezes me surpreenderam com idiotices sem tamanho e discursos extremamente tacanhos. Muitos "despertos", aliás, foram acusados de abuso sexual ou outros delitos. Se tratam, obviamente, de meros seres humanos, e nestes, a crença de que atingiram o despertar os torna piores. Como poderia fazer bem para o ego de uma pessoa ser considerada superior às demais por méritos espirituais? Esse é o pior ego.

Quando isso tudo acabou, eu compreensivelmente fiquei bem brava de ter caído nessa por tanto tempo e passei algum tempo bem raivosa contra essas crenças. Me senti enganada, trouxa e crédula.

Porém, acho que o budismo me ajudou a criar um senso de disciplina e descobrir a meditação (que melhorou muito sem crenças sobrenaturais, inclusive). Eu consegui, graças aos preceitos budistas, largar até hoje a bebida e as drogas e vivo muito bem. Tenho que agradecer ao budismo, ao neoxamanismo, ao espiritismo, ao paganismo e ao panteísmo místico pela jornada que cada um deles me propôs e como me engrandeceram como pessoa. Cada uma dessas coisas foi uma descoberta que mudou meu mundo profundamente, e este mundo não voltou a ser o que era antes quando eu as abandonei.

Hoje sou feliz sendo atéia e cética; uma pessoa descrente e que está descobrindo a filosofia profundamente para entender a espiritualidade não-religiosa (ou seja, a produção espiritual da humanidade na sua busca pelo conhecimento) (1). Essa jornada está enriquecida pelas experiências anteriores. Filosofia da religião é algo que invade todos os grandes debates da filosofia: ética, estética, ontologia, lógica, história, epistemologia e política. Assim, tenho um ponto de vista privilegiado para entender o pensamento daquelas mente que se fascinaram pelo Absoluto, pela Verdade e por Deus. Eu mesmo compartilhei tal fascínio em algum ponto da minha vida.

A descrença, porém, trouxe vantagens indiscutíveis: 

1. O fim de um sentido para tudo. Para muitas pessoas, isso pode ser devastador, mas para mim foi maravilhoso. Não faz sentido nenhum existir um objetivo cósmico igual para todas as pessoas, ainda mais sendo primatas num universo indiferente. É muito mais belo forjarmos os sentidos que preferirmos e escolhermos de que modo viver essa única vida com liberdade;

2. O fim do mundo justo. Essa ideia de que "tudo que vai, volta" e de que o mundo se autorregula através de uma lei moral é tóxica para as sociedades (porque justifica o poder e a exploração humana) e também para as pessoas. Para uma ex-cachaceira como eu, que agiu muito mal e machucou muitas pessoas impensadamente, essa crença era demolidora, pois eu tinha certeza que um carma ruim se manifestaria num futuro após a morte ou ainda nesse mundo. E mais: eu tinha uma obsessão com "limpar essa barra" e fazer coisas que compensassem as más ações. Nada disso faz sentido! É muito melhor a gente entender que justiça é uma ideia humana (e que cabe a nós tornar o mundo mais justo com a força de nossos braços). E, num nível individual, entender que as pessoas podem falhar e tentar consertar o que for possível é melhor. A única solução para modos de vida prejudiciais é se modificar e tentar ser o melhor que pudermos a cada dia;

3. O fim de sentimentos ascéticos. Sendo budista Teravada, estava numa das seitas mais ascéticas que compreendem os ensinamentos originais do Buda (e vários acréscimos, claro). Praticamente todas as outras seitas budistas são mais light nessa questão, pois inventaram ensinamentos novos que tornam o Buda francamente mais humano. São mais fáceis de seguir. Porém, mesmo esses ensinamentos ainda são ascéticos num sentido profundo. O ascetismo é uma visão de que este mundo existe como um lugar de apegos menores e que existe outra esfera superior: o Nirvana, o Paraíso, o Mundo Espiritual etc. Esse são os mundos verdadeiros e o nosso é apenas uma provação, uma ilusão ou outra coisa menor. Desnecessário dizer que essa crença nos faz ver a vida de modo muito negativo. Eu me sinto feliz hoje de ver a vida como a única vida e o mundo, por imperfeito que seja, como o único mundo. Isso torna tudo mais gratificante e natural, trazendo um senso de preciosidade e admiração incríveis;

4. O fim da crença em seres iluminados. Esse lance é tóxico em muitos níveis, não só por fazer pessoas más manipularem e abusarem (até sexualmente) de outras, mas por criar uma ideia de perfeição que nos faz nos sentirmos pessoas inadequadas por sermos "meros" seres humanos, sujeites à falhas e a pontos cegos no nosso modo de ver a vida. Apesar disso, temos também grande potencial para sempre aprender e crescer, e até fazer coisas muito boas. Me sinto muito mais feliz de ser meramente humana até minha morte! Podemos melhorar, mas continuaremos sendo apenas primatas com a cabeça grande demais;

5. O fim do erro epistemológico da religião. Esse erro consiste em pensar que experiências religiosas, conversas com espíritos, contato com divindades, memória de outras vidas e outras experiências subjetivas são boa evidência para acreditar em algo. Não são. A experiência de uma pessoa (ou grupo sugestionado de pessoas) não é evidência para nada. Nossa mente se engana muito facilmente e produz sozinha estados de consciência bem distantes do ordinário. É preciso um rigor racional que a religião e as crenças espiritualistas religiosas não têm para alcançar um conhecimento seguro e fidedigno, e por isso continuam aceitando um monte de baboseiras e ainda induzindo multidões ao erro. Não ser induzida ao erro é muito bom e libertador!

É isso! A ilusão que morre é sempre boa. Foram os dois melhores anos da minha vida esses sem crenças no sobrenatural e no místico. Recomendo muito a quem ainda está aprisonade que se liberte e venha para a aventura do mundo real.

**

Notas:

(1) Espiritualidade: A maioria das pessoas acha que essa palavra se refira somente a crenças sobrenaturais. Na verdade, "espiritual" significa qualquer coisa ideológica, cultural, artística, sentimental e não corpórea em geral, mas própria da mente. Eu diria ainda que a experiência religiosa em si, a epifania e a busca de autoconhecimento não precisa de crenças sobrenaturais. Então esse sentido da palavra "espiritual" que se usa para práticas de meditação e contemplação da natureza também pode ser abarcada pelo ateísmo, conforme Sam Harris ("Despertar") e André Comte-Sponville ("O Espírito do Ateísmo").

(2) O budismo não rejeita apenas as dualidades essencialistas do taoísmo como também o gênero binário, embora isso não tenha se refletivo muito nas práticas das sociedades tradicionalmente budistas. São sociedades quiriárquicas e patriarcais ao extremo. Há alguma evidência histórica de que Sidarta Gautama provavelmente tinha ideias bem mais "feministas" e "queer" que seus seguidores e provavelmente ensinou, em seu tempo de vida, que mulheres seriam capazes de obter qualquer grau de despertar e que a ideia de ser homem oy mulher fossem meras ilusões. Porém, mal esfriava seu cadáver, a ordem de monges tomou conta e submeteu as monjas ao seu poder, e extinguiu essa ordem em muitos países. Existe uma luta das monjas contemporâneas para se reestabelecer após mil anos sem uma ordem na Tailândia, no Sri Lanka e no Myanmar. No Tibete, a ordenação de mulheres nunca existiu, passando a ser criada no século XX por causa de pressões feministas. O gênero binário continuou extremamente essencialista nas sociedades que se converteram em massa para o budismo, adicionando-se qo conjunto de ensinamentos atribuídos ao Buda novos textos com ideias cisheteronormativas e patriarcais.

(3) Os cinco preceitos do budismo Teravada são recomendações morais que não obrigatórias, mas podem ser praticadas por quem deseje aprofundamento:
I- Eu tomo o preceito de abster-me de matar seres vivos;
II- Eu tomo o preceito de abster-me de tomar o que não for dado;
III- Eu tomo o preceito de abster-me de comportamento sexual impróprio;
IV- Eu tomo o preceito de abster-me da linguagem mentirosa;
V -Eu tomo o preceito de abster-me do vinho, álcool e outros embriagantes que causam a negligência. 

(4) Eu não defendo o petismo, mas acho que a monja tinha o direito de simpatizar com qualquer político que quisesse. Sou contrário a essa ideia de que a religião deve ser "neutra". Não existe neutralidade. Critico a postura "neutra" dos monges reacionários porque é uma defesa velada de políticos conservadores. Seria mais digno eles assumirem suas simpatias, mas isso exigiria admitir o debate de ideias dentro do espaço religioso, e essas figuras têm muito medo de permitir o pensamento crítico.

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