Monogamia não é exclusividade
A monogamia não é a prática de ter relações românticas/sexuais exclusivas. A isso chamamos "relações românticas exclusivas". A monogamia é um sistema ideológico que pressupõe a existência de uma tendência humana superior de relacionar-se em casal, sendo esse uma entidade ideal e relativamente exclusiva em tema de sexo e algumas intimidades. O sistema monogâmico vem de mãos dadas com o surgimento de uma sociedade onde a propriedade privada da terra e dos meios de trabalho pode ser herdada, e portanto apoia as ideologias de clã e família que colocam um sistema de parentesco construído ao seu redor. A religião, a cultura, as práticas amorosas e tudo isso não pode estar separado dessa estrutura de propriedade privada e herança.
O etos monogâmico de uma relação está no discurso que prioriza o casal e a família como mais importantes relações e coloca a amizade, os vínculos por afinidade e outros relacionamentos num lugar de não-relacionamento: estar em um Relacionamento® é ter um vínculo romântico/sexual com pretensões de se tornar casal oficial, reconhecido, assumido publicamente e alardeado. Se uma relação tem esses elementos, é atravessada pela ideologia monogâmica. Assim, por exemplo, a amizade que se coloca em segundo plano em relação ao casal é uma amizade monogâmica, o perfil em aplicação de namoro que foca na busca de alguém para ser casal é um perfil monogâmico, as conversas com vinte contatinhos filtrando e buscando as qualidades numa lista especial para escolher uma pessoa e bloquear as demais são conversas monogâmicas...
Uma relação romântica não perde sua monogamia intrínseca se existe a infidelidade ou o interesse manifesto por outras pessoas que se consuma em ações verbais e simbólicas. Na verdade, esse tema da infidelidade e da ameaça que as outras pessoas representam para o Amor Verdadeiro® do casal são uma preocupação constante dessa ideologia. A consumação de relações extraconjugais, o perdão, o término, os ciúmes, a confiança etc. são assuntos monogâmicos por excelência. E se existe uma Outra Pessoa®, essa é uma relação monogâmica também, definida por sua posição em um sistema hierárquico.
Por isso, a relação aberta, que muitas pessoas consideram poliamorosa, na verdade é demasiado monogâmica: existe uma pessoa oficial e as outras pessoas. Suas hierarquias seguem colocando o casal no centro da vida. O mesmo acontece com o poliamor consensual, no qual as pessoas têm um número de pessoas com um título especial, e essas relações são o centro da vida social da pessoa, havendo inclusive contratos de "polifidelidade". É uma lógica poligâmica, e com isso tem muito em comum com a monogamia; não é mono, mas é gâmica.
Lembre-se que a poligamia também é um sistema ideológico centrado na herança e nas ideologias de família, clã, patriarcado e Estado. Algumas pessoas acham que as relações não-monogâmicas são o mesmo que relacionamento aberto ou poligamia, por não conseguirem imaginar uma maneira de viver que não seja centrada nos temas de casal, família, amor romântico estilo Disney e as temáticas da fidelidade e seus problemas.
Existe uma vida relacional melhor fora desses sistemas, que vem de uma crítica feminista e anarquista: começou com o Amor Livre no século 19 e avançou com os desmontes graduais do sistema monogâmico até a Anarquia Relacional e as Não-Monogamias Políticas. Essa crítica foi se construindo pouco a pouco na periferia de um sistema monogâmico, não brotando do nada como se fosse uma ideia já pronta: começou questionando a união indissolúvel, os ciúmes, a exclusividade e o machismo, e com o tempo chegou no nível crítico de questionar o casal, a família e a propriedade privada da terra e dos meios de trabalho. É uma crítica que desmonta a naturalidade fingida desses discursos, o "sempre foi assim e sempre será".
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