Agnosticismo: um conceito vandalizado por erros

Quase nenhuma termo passou por tantos problemas de distorção em seu uso histórico como "agnosticismo", assim como o rótulo binário "agnóstico" associado a ele. O agnosticismo surgiu como uma espécie de metodologia crítica de pensamento e se transformou num rótulo quase exclusivo à uma posição de incerteza diante da hipótese teísta. É uma simplificação que denota uma perda de sua dimensão profunda e necessária para o pensamento crítico.

A primeira pessoa a cunhar o termo "agnosticismo" foi Thomas Huxley em 1869, e este autor o descreveu como uma metodologia, e não uma crença pessoal. Essa metodologia estabeleceria que é errado afirmar qualquer coisa para a qual não se pode produzir evidência que logicamente justifique essa asserção.

Huxley saiu de seu caminho para sempre desqualificar a ideia de agnosticismo é uma crença ou uma doutrina filosófica. Ele usava seu agnosticismo como oposição a qualquer sistema doutrinário ou argumento que exigisse afirmações sem evidência.

Não é surpresa que seus maiores rivais tenham sido bispos, sacerdotes e intelectuais cristãos, uma vez que estes se escandalizavam com afirmações que o mesmo fazia em favor da Teoria da Evolução (dadas as evidências esmagadoras que enxergava) e a baixa probabilidade de assuntos importantes para as pessoas religiosas de seu tempo: milagres, o mundo espiritual, almas, a existência de demônios e o que possa ter dito Jesus Cristo ou não.

Hoje em dia, quase duzentos anos depois, o agnosticismo foi vandalizado por usos que o simplificam demasiado e que o colocam numa espécie de "suspensão total do juízo", sem preocupação com espistemologia. O termo ganhou um teor psicológico (alguém "é agnóstique" em relação a um tema específico) e quase sempre voltado para a hipótese teísta.

Alguém poderia argumentar que os termos mudam com o tempo, e eu, linguista, terei que aceitar essa asserção. Algumas pessoas mudaram o nome das concepções de Huxley para "evidencialismo", e deixaram a versão empobrecida de "agnosticismo" significar "suspensão do juízo diante da hipótese teísta".

Eu sou totalmente contrário a esse desenvolvimento porque há pessoas usando a palavra "agnosticismo" para defender que não há evidência diante de diversos outros campos onde não se está falando de divindades. Para mim, o uso empobrecido é que deve mudar de nome ou ganhar um qualificador como "pseudo-agnosticismo".

Então vamos resumir de algumas maneiras o que foi dito:

1. Agnosticismo não é sobre a existência de divindades. Pode até tocar essa questão em um momento, mas é algo muito maior - é uma metodologia que consiste em não fazer afirmações para o qual não há evidência que logicamente as suporte;

2. O agnosticismo não se opõe a "gnosticismo" como estado psicológico. Algumas pessoas amadoras inventaram uma suposta oposição entre a ideia de "não ter certeza" contra a ideia de "ter certeza", dando o nome a essas duas coisas de "agnosticismo" e "gnosticismo". Essas definições são pobres e pouco úteis, além de não ter boa base na literatura filosófica. O agnosticismo não é um estado psicológico de "não ter certeza" e "gnosticismo" não é uma postura epistemológica. Gnosticismo, é, na verdade, um tipo de religião cristã primitiva;

3. O agnosticismo não é uma postura de indecisão diante de assuntos, mas a ausência de afirmações quando esses assuntos carecem de evidência. Por exemplo, a existência de almas, anjos e demônios é algo altamente duvidoso e para o qual não existe evidência. A "pessoa agnóstica" (que adota esse método de análise) não diz que talvez existam almas, anjos e demônios, mas que não existe evidência e que duvida disso. Ela não afirma que certamente não existam essas coisas, tampouco, dado que a inexistência jamais se pode apresentar com evidência conclusiva.

Assim, o agnosticismo é uma postura de alto valor científico (a própria ciência moderna é construída com base em seu rigor), e o empobrecimento de seu significado para "pessoas indecisas sobre a existência de divindades" é algo que faríamos melhor em combater, ainda que isso signifique remar contra uma tendência fortíssima na popularização que deformou o termo.

Como uma última coisa que gostaria de dizer sobre o tema, o agnosticismo não se opõe ao ateísmo em suas definições funcionais e úteis. Huxley por muitas vezes escreve os termos "ateísmo" e "anti-teologia" como coisas fora do agnosticismo, porém não havia um desenvolvimento correto desses termos em seu tempo. Quase nenhuma pessoa atéia afirma que "com certeza não existem divindades" (como vimos na Escala de Probabilidade Teísta de Dawkins em "Deus, um delírio"); as poucas que diriam isso seriam um tipo de irracionalista anti-teísta. Huxley pensava que esse fanatismo afirmativo seria o ateísmo em si, mas essa definição não é defendida por ninguém que pensou o ateísmo a sério.

Como foi dito, devido à própria natureza dos temas de inexistência do que não pode ser observado, a evidência total é impossível: não há prova de que não há unicórnios, divindades, gnomos, almas, magia, um pote de porcelana voando no espaço em uma órbita com o sol etc. O que as pessoas ateístas afirmam é que divindades são muito improváveis e que não creem que elas existam (ou não têm crença que elas existam, dependendo do tipo de ateísmo). Se Huxley tivesse essas definições em mãos, teria se considerado ateu. Porém, escreveu em um tempo que ateísmo era um termo recém-resgatado do esquecimento e deformado por pessoas desonestas para difamar as hipóteses ateístas. Além disso, havia muito mais perseguição a quem usasse um termo como "atéia/ateu" para descrever-se.

Podemos ver Huxley zombando todo o tempo da possibilidade de coisas miraculosas e dizendo que são provavelmente falsas. Assim, o ateísmo corretamente definido é uma consequência lógica do agnosticismo: quem analisar a hipótese teísta com evidência em vista só poderá concluir que é uma improbabilidade imensa. Não existe teísmo que "siga as evidências" sem alguma falsificação. E a postura de que "talvez existam divindades, ou talvez não" não é uma postura intelectualmente rigorosa, e, portanto, não segue o método agnóstico.

Eu sei que isso conflita com usos populares (até Dawkins em "Deus, um delírio" usa "agnóstico" de uma maneira popular), porém o agnosticismo é uma ideia muito elevada para ser usada dessa maneira. Isso retira dela qualquer tipo de valor descritivo, o substituindo por uma paródia lamentável. Pode parecer extremamente desagradável, especialmente para quem usava o termo nesses usos populares para descrever a si, mas eu mantenho e defendo esses usos mais razoáveis do termo, relegando ao uso popular alguma outra palavra: confusão, incerteza, estado de dúvida etc.

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