Nenhuma ideia de paraíso faz nenhum sentido

Eu já expliquei porque um céu onde ficamos venerando eternamente a deus e cantando glórias seria algo bastante desagradável e infernal e que esse deus que necessitaria de louvor e nos teria criado para louvá-lo seria uma entidade que deixaria a desejar em muitos critérios do que seria um ser maximamente bom.

Agora, eu desejo mostrar incoerências lógicas em qualquer ideia de paraíso que qualquer teísmo possa vir a ter. É importante definir o que eu quero dizer com "paraíso": seria a recompensa divina eterna após uma vida virtuosa e adequada na Terra. Esse é o escopo dessa crítica. (1)

Bom, tendo definido o objeto da crítica, vamos partir para os pormenores da questão: 

Muitas formas de teísmo, como o islamismo e tipos diferentões de cristianismo, pregam que deus vai proporcionar uma mansão no céu para as pessoas que forem salvas e que lá terão luxos e felicidade eterna, virgens (se forem homens, suponho), ruas de ouro, leite e mel... Vamos supor que seja uma metáfora, porque o ridículo dessas descrições transparessem o quão são ideias inventadas por pessoas bárbaras e ignorantes em tempos escravistas e brutalmente patriarcais.

É importante dialogar contra as melhores versões de cada ideia, então vamos supor que deus proporcionaria felicidade e paz em um lar espiritual onde não existe sofrimento e você terá as pessoas que ama para sempre com você. Vamos supor que seria uma coisa 100% boa ter que aguentar essas pessoas para sempre, etc. Nada de virgens, vamos supor que o profeta Maomé foi enganado pelo diabo nessa (2) e vamos supor que não haverá nem escravidão, nem opressão, nem sofrimento, nem nenhum tipo de mal nesse paraíso eterno e que não existe nenhuma contradição nas cláusulas que eu descrevi aqui - faremos isso para fins de argumento, uma vez que se pode encontrar problemas nessa ideia em si.

Concedendo tudo isso aos argumentos teístas, estamos imaginando que essa é a solução de um deus sumamente bom, justo, sábio e digno, que tem todas as qualidades possíveis no máximo grau. Esse deus teria nos dado a oportunidade de uma única vida para escolher agir dos modos adequados e benéficos (seja quais forem os critérios) para merecer essa recompensa eterna, apesar de todas nossa limitações humanas.

Porém, isso supõe que haveria uma espécie de livre-arbítrio, ou seja, que os seres escolheriam agir bem ou mal e que tenham uma total flexibilidade de escolha nesse respeito: a ideia de livre-arbítrio libertário. Não existe nenhuma coisa impedindo ou determinando suas escolhas, é tudo sua responsabilidade. Essa é uma ideia fracassada e sem sentido em si mesma. As pessoas são determinadas por suas condições, e seus comportamentos são ditados pelos exemplos que encontram em sua vida. Pessoas que não recebem amostras de afeto e amor em sua criação são incapazes de compreender essas expressões e podem buscar relações violentas e reproduzir a opressão. Pessoas expostas ao autoritarismo podem puxar o saco de quem pareça forte e desejar estar na boa vontade de tiranos psicopatas, realizando tudo que mandam sem questionar. Pessoas que vivem num meio de guerra constante ou miséria podem ter que escolher ações más para sobreviver um dia mais, ou para ter qualquer dignidade ao invés de se deixar matar ou ser escravizadas.

Deus teria criado tudo isso sabendo de que escolhas e consequências teria cada ação. Dessa maneira, ele teria predestinado algumas pessoas ao inferno ou a não estar no paraíso, e permitido que outras fossem para lá facilmente. Além disso, ele teria criado o inferno em vida para algumas pessoas e a consequência do inferno eterno por ter nascido onde e quando ele mesmo escolheu.

É claro que pode existir algum livre-arbítrio compatibilista, não uma liberdade total como se estivéssemos suspensos no além, mas a liberdade dentro das condições dadas, e talvez deus julgue as pessoas dentro do que era possível para elas, e perdoe coisas que não tinha como ser diferente. Essa a única maneira do teísmo escapar da contradição de um deus que predestina pessoas para o paraíso e outras não. (3)

Vamos supor então que esse deus julgue o pequeno escopo das ações das pessoas. Ele deve supor que as pessoas podem se arrepender de erros e crescer. O problema é que uma vida humana é um período curto para o qual aprimorar-se, em alguns casos. A pessoa pode morrer muito jovem ou não aprender adequadamente. Se deus tivesse o critério de salvar qualquer pessoa que tivesse intenção de ser o melhor possível, seus critérios são muito soltos. No final, todas as pessoas querem fazer o que julgam correto. Se deus aceitasse que as ações más são consequências de um meio mal que ele mesmo criou e os perdoasse por isso, praticamente não haveria quaquer condenação. O critério precisaria ser mais específico para ter sentido. (1)

Isso deixaria uma contradição: as pessoas que nunca tenham sido expostas a essas ideias adequadas já estariam condenadas desde o princípio. Imagine alguém que nasceu numa comunidade que considera mutilação genital algo sagrado e que salva as meninas de algum pecado. A pessoa não tem culpa de ter sido doutrinada nessas ideias, e podemos concordar que são horríveis e imorais (4). Ela já estaria condenada desde o princípio?  Se você discorda desse exemplo, imagine qualquer outro tipo de exemplo: a pessoa ter nascido numa sociedade canibal, ou não existe a versão correta da palavra de deus onde essa pessoa nasceu... pode ser qualquer variação.

Para além dessas contradições de acesso ao paraíso, a ideia de viver eternamente em um reino mágico de luz parece um tipo de pensamento desejoso (wishful thinking) e seria exatamente o que esperaríamos se alguém tivesse inventado isso porque lhe parece o mais atraente possível. É uma crença infantil em si mesma. Temos que afirmar aqui o óbvio: não existe qualquer boa evidência para e existência de almas e de outra vida.

No final, a ideia de paraíso pode ser abandonada mais facilmente ainda pela simples percepção de que é uma ideologia conveniente para gerar o conformismo e o amansamento das pessoas, para que aceitem a exploração e as injustiças caladas e de joelhos, uma vez que têm esperança numa vida eterna e melhor que essa. Isso também é exatamente o que esperaríamos se algum sacerdote tivesse inventado isso para continuar no poder de mãos dadas com o estadista, contando as moedinhas enquanto a casta escravizada se motiva com ilusões. Os dois riem e bebem vinho, cada um com suas escravas virgens debaixo do braço.

Notas:

(1) Ideias universalistas (todas as pessoas serão salvas) e de reencarnação serão desmanteladas em outros textos (também são cheias de furos lógicos).

(2) No islamismo, algumas pessoas acreditam que o diabo ditou alguns versos do Corão a Maomé, e por isso alguns versos são estranhos. São os famosos "versos satânicos".

(3) Algumas correntes cristãs pregam a predestinação. Elas tentam argumentar que deus não tem a obrigação de criar a salvação para todos os seres e não conseguem responder corretamente a esse argumento, sendo derrotadas na sua falta de lógica absoluta. Outras tentam forçar a ideia do livre-arbítrio libertário, fingindo que não existe determinação pelo meio. Nesse sentido podem teimar em não admitir a derrota, mas não conseguem adequadamente responder a esse dilema.

(4) Para fins de argumento, assumi uma ideia de moral objetiva na qual a mutilação genital é errada. Pode ser que você não goste desse argumento. Por favor, substitua esse exemplo por outros comportamentos imorais aos olhos de um deus que possa imaginar ou que julgue existir, sejam tais coisas objetivamente imorais ou não.

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