Grupos Anônimos (12 passos) são um problema sério

Eu costumava ter transtorno de uso de álcool. Muitas pessoas conhecem as famosas comunidades terapêuticas baseadas nos 12 passos, como Alcoólicos Anônimos e outros grupos Anônimos (Al-Anon, Dependentes de Amor e Sexo, Narcóticos, Nicotina, etc.). Participei desses grupos após ter contato com uma pessoa da mesma religião que praticava na época, e tive uma experiência tão horrível com a mentalidade desses grupos que até colocou em risco minha recuperação desse transtorno por algum tempo.

Esses grupos funcionam basicamente através de cura pela fé: a pessoa recebe a sugestão insistente de que deveria seguir doze passos para recuperação. Os passos são:

1º. Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis.

2º. Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderia devolver-nos à sanidade.

3º. Decidimos entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados de Deus, da maneira como nós O compreendíamos.

4º. Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos.

5º. Admitimos a Deus, a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata das nossas falhas.

6º. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

7º. Humildemente pedimos a Ele que removesse nossos defeitos.

8º. Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a fazer reparações a todas elas.

9º. Fizemos reparações diretas a tais pessoas, sempre que possível, exceto quando fazê-lo pudesse prejudicá-las ou a outras.

10º. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.

11º. Procuramos, através de prece e meditação, melhorar o nosso contato consciente com Deus, da maneira como nós O compreendíamos, rogando apenas o conhecimento da Sua vontade em relação a nós e o poder de realizar essa vontade.

12º. Tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

Fonte: Site do Narcóticos Anônimos Brasil.

Você pode ver que existem referências a um Poder Superior e a Deus, além da necessidade de passar por confissões de nossas falhas morais e buscar um despertar espiritual. Alcoólicos Anônimos, que foi a primeira dessas "irmandades", começou nos E.U.A. em 1935 com dois evangélicos que dizem ter seguido esses passos para sua recuperação, e que, com o tempo, decidiram flexibilizar sua ideia de ser um grupo exclusivamente cristão para incluir outras denominações ou pessoas com uma noção sui generis de Deus ou de um Poder Superior. Por isso, dizem que não é extritamente religioso, e sim espiritual. Essa distinção não tem muita importância quandos sua literatura oficial cita a necessidade de abandonar a descrença e de praticar a oração, algo que é feito em cada reunião, ao início e ao final. A oração é a seguinte:

"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, Coragem para modificar aquelas que podemos, e Sabedoria para distinguir umas das outras."

Fonte: Site do Alcoólicos Anônimos Brasil.

Os grupos Anônimos têm um conjunto de crenças a respeito da "dependência" que são ultrapassados segundo o melhor conhecimento que temos hoje em dia sobre o assunto:  o transtorno por uso de drogas é um problema moral; "viciados" ou "alcoólatras" têm um "cérebro viciado"; as pessoas precisam parar de usar drogas para sempre, não havendo alternativa; deve-se continuar frequentando as reuniões ou há o risco eterno de recair; a dependência é um problema que se aplica a todas as drogas e a outros comportamentos; somente uma via espiritual pode promover o autoconhecimento e as práticas que permitem a cura, sendo outras metodologias todas falhas e imperfeitas; por último, a metodologia dos grupos Anônimos tem uma eficácia incrível e comprovada, acima de quaisquer outras práticas. Todas essas crenças não só estão desatualizadas, mas contêm elementos danosos, que podem criar tensões desnecessárias, além da propaganda a favor dos grupos.

Tudo isso nos mostra que esses grupos podem fazer mais mal do que bem, mas sua metodologia ainda é amplamente respeitada e apoiada, até mesmo pelas forças da lei e pela comunidade médica. Uma pessoa no Brasil que cometa um crime no qual o uso de drogas seja um elemento é levada a essas reuniões (já vi inclusive saindo da prisão para ir ao grupo e depois voltar); profissionais de saúde recomendam os grupos como se fosse uma metodologia segura para todas as pessoas. É uma realidade horrível para a saúde mental pública, pois justamente porque esses grupos são gratuitos para participar, pedindo apenas contribuições voluntárias, se tornam, para muitas pessoas, a única opção. Para mim, inclusive, foi assim por algum tempo. Muitas pessoas que não possuem crenças sobrenaturais ou que têm crenças religiosas sem a ideia culpa moral, pecado e/ou de um Poder Superior não conseguem usá-lo adequadamente, sentem-se excluídas e acabam saindo. Elas podem ficar sem tratamento, o que tem consequências terríveis (até mesmo a morte), tudo isso porque os governos consideram adequado evitar a responsabilidade de investir em serviços psicológicos públicos com metodologias seguras e deixar o tratamento acessível da "dependência" basicamente limitado a esses grupos.

Para ser justo, no Brasil existem psicólogos e psiquiatras na rede pública que trabalham com isso usando as melhores metodologias, mas não em número suficiente e nem com recursos suficientes, levando muitas pessoas a não conseguir acompanhamento adequado.

Felizmente, consegui me curar desse transtorno com a ajuda de metodologias baseadas em evidências, mas foi um privilégio ter o dinheiro para pagar pelos tratamentos (o SUS me deixou na mão) e o acesso à informação para saber que há coisas melhores. A propaganda dos grupos Anônimos é muito forte e muita gente pensa que não há nada melhor. Vemos isso reproduzido em jurisprudência, meios de comunicação jornalísticos e até na academia.

Há algo bom nesses grupos? Não é possível que tenham essa popularidade tão grande sem oferecer nada que ajude de alguma maneira. O benefício que os grupos Anônimos trazem é a participação de um grupo de apoio onde é possível escutar relatos, acessar experiências e contar com a ajuda de pessoas que entendem seu problema e não o tratam como um estigma, deixando de lado alguns preconceitos, que ainda são muito grandes.

Infelizmente, no caso dos grupos Anônimos, muito dessas "partilhas" contam com reforço das crenças espiritualistas desses grupos e da necessidade de seguir participando para sempre, com ameaças de recaídas caso deixe de participar e não se siga as "sugestões" da doutrina. Ironicamente, se fossem feitos grupos de apoio e ajuda mútua que não contam com esses dogmas, seriam um bom recurso. Há estudos que mostram que essa abordagem de grupo de apoio (acompanhados por uma acessoria profissional) já ajudou pessoas com transtornos que não têm apenas a ver com transtorno de uso de substâncias, mas até depressão clínica e outros. Nos E.U.A. e em outros países, já existem grupos de apoio que não estão ligados aos dogmas dos 12 passos, embora não recebam reconhecimento devido ao respeito que essa metodologia angariou na opiniao pública. Por essa razão, são desconhecidos no "sul global". 

Enquanto apenas os grupos Anônimos gozarem de um quase monopólio do tratamento gratuito para transtorno de uso de substância, muitas vidas estão em risco. Não só as características de seita desses grupos causam muito dano psicológico às pessoas, mas também as pessoas que não se adaptam à necessidade de crenças místicas ficam, como foi dito, à revelia, podendo até vir a falecer. Precisamos de mais investimento em metodologias como Redução de Danos e apoio a grupos alternativos aos de 12 passos urgentemente. Infelizmente, numa sociedade com muitos vestígios de uma moralidade cristã, tomada pela crença em culpa moral e necessidade de Deus para ser feliz, é um problema que passa despercebido. Muitas pessoas, de um ponto de vista do senso-comum em nossa cultura, apenas afirmam que aquelas pessoas que não querem depender de Deus para curar-se "têm realmente uma doença espiritual". É um exemplo mais de fanatismo, preconceito e supremacia católica/evangélica de uma sociedade onde nos falta educação, laicidade e respeito.

Crédito da foto: Pedro Ivo/ Agência O Dia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O problema com o budismo

O livre-pensamento e a expressão religiosa minoritária

Malteísmo